O primeiro passo dado pela humanidade na Lua foi em 1969 e, graças à força da gravidade muito menor que a da Terra, Neil Armstrong e Buzz Aldrin puderam flutuar na superfície do satélite do nosso planeta. Mas antes disso os passos do Locking e do Popping já eram dados por aqui e logo surgiria o Breaking como forma de desafiar a gravidade daqui mesmo. Desde então muitos anos se passaram e, é claro, muitas coisas mudaram. No mundo e no Breaking. Pude cobrir a etapa brasileira do Red Bull BC One pelo Kalamidade e escreveria um texto jornalístico convencional, com sua manchete, seu lead e sua estrutura, mas encarando a tela em branco decidi fazer algo um pouco diferente. Menos mal que tenho os discos. Vivi um final de semana de muito aprendizado e diversão lá no Pangea STREETOPIA e aqui vai o meu relato.
A referência espacial do primeiro parágrafo não foi à toa. Quero que o leitor pense no mundo daquela época, sem celulares, com a música no vinil, com o Brasil recém-campeão da Copa de 70 e saindo das Olimpíadas de 1972 com apenas duas medalhas, ambas de bronze. Sim, já toquei no fatídico assunto que deve permear muita conversa sobre Breaking nos próximos dois anos. Hoje nós temos o advento do smartphone, as músicas estão no streaming, sonhamos com o tal do Hexa em uma Copa do Mundo em novembro e o Breaking estará nas Olimpíadas de 2024.
Antes que o leitor ache que eu esteja soando como aquele tio que diz “Mas no meu tempo que era bom…” e em seguida despeja atrocidades como defender ditaduras militares, bora falar do evento e você vai ver que não é nada disso.
As Cyphers Regionais
Antes de chegarmos à final realizada no domingo, 31 de julho, que contou inclusive com transmissão ao vivo nas redes sociais da Red Bull e até na SporTV, muita coisa já vinha rolando. Foram realizadas ao longo do mês, fora de São Paulo, três Cyphers que garantiram vagas na final, além da própria Cypher paulista, que aconteceu na manhã e tarde da sexta-feira, dia 29. Os eventos em Fortaleza, Brasília e Curitiba ocorreram nos dias 10, 16 e 23 de julho, respectivamente.
Em São Paulo, a chuva forte da sexta não desanimou os participantes nem o público, e centenas de b-boys e b-girls competiram pelas últimas vagas restantes. O formato democrático da competição permite que qualquer b-boy ou b-girl possa brigar por um lugar na final e bater de frente com grandes nomes já consolidados na cena.
Mas com tantos inscritos alguém das cyphers regionais tem mesmo chance de disputar o título? Sim! Primeiramente, o nível destas seletivas já é altíssimo, mostrando que o céu é o limite para o Breaking brasileiro. A campeã da cypher de sexta, B-girl Dedessa, por exemplo, já havia tentado participar na edição anterior mas não chegou até a final. Desta vez classificada, enfrentou Itsa, que levou o título em 2021, em uma batalha de igual para igual. No seu caminho pela cypher regional, Dedessa ainda derrotou a b-girl Fran, que por sua vez chegou até a semifinal no domingo, perdendo apenas para quem se tornaria a campeã.
Para além das Cyphers
É aí que vem o brilho. O evento de três dias, o Red Bull BC One Camp como um todo, foi anunciado como um “mini-festival” da cultura Hip-Hop. E o meu questionamento é: por que mini? A forma com que a programação foi organizada poderia, na verdade, ser o paradigma de festival a ser pensado para a cultura.
Durante os intervalos entre as batalhas ou até mesmo durante elas, o público pode participar de uma série de atividades que incluíram workshops, conversas e uma exposição conjunta da lendária fotógrafa Martha Cooper e o artista brasileiro Wagner Wagz. Nos workshops, referências como o b-boy Lilou, a b-girl Sarah Bee, o capoeirista Arthur Fiu e o DJ Kapela transmitiram aos participantes um pouco daquilo que cada um sabe de melhor. Já nas conversas, o próprio Lilou, o b-boy Allef, finalista desta edição, e o fotógrafo Little Shao demonstraram como o audiovisual pode ser um aliado do b-boys e b-girls em sua carreira, por exemplo.
Além de dar o som às batalhas, os DJs tiveram seu espaço próprio no Red Bull BC One Camp. O DJ Love, e as DJs Miya B e Cynara tocaram no belo rooftop do STREETOPIA. Nos cyphers, Kapela, MF e Pow também puderam tocar seus sets para qualquer um dançar finalizadas as competições.
Com o Breaking protagonizando o evento, os DJs tendo seu lugar garantido e a figura do MC estar presente nas apresentações, só falta um elemento para o Hip-Hop estar completo. Mas o Graffiti esteve muito bem representado graças à presença de Martha Cooper e Wagner Wagz. Admirador do trabalho de Cooper, o grafiteiro e b-boy fez nos últimos anos uma série de jaquetas pintadas a mão com artes baseadas nas fotos de Martha. Testemunha do gênesis do Hip-Hop nos anos 70, a fotógrafa norte-americana é responsável por imagens icônicas do graffiti nos trens de Nova York. Artes que teriam sido perdidas se não fosse seu registro. As jaquetas foram expostas ao lado das fotografias que as inspiraram e o Kalamidade pode trocar uma ideia com a dupla de artistas. A entrevista completa vai sair em uma matéria própria em breve!
Assim como Martha estava circulando pelo local tirando suas próprias fotos do evento, Lilou, Sarah Bee, Pelezinho e outros ídolos estavam lá, disponíveis e acessíveis para uma foto, um cumprimento, uma conversa breve entre uma atividade e outra. A forma com que todos esses expoentes se reuniram e estiveram tão próximos do público que consome sua arte e faz sua própria é, sem dúvidas, uma grande forma de catalisar a cultura Hip-Hop. Quem não sai inspirado e louco para fazer sua arte depois de conversar com suas grandes referências?
Por último, mas não, nem de longe, o menos importante, outras batalhas em formatos e estilos diferentes do tradicional 1×1 do evento aconteceram durante o final de semana. O sábado recebeu a batalha Bonnie & Clyde, formato em duplas com um b-boy e uma b-girl em cada. Pela noite, foi a vez de uma batalha-exibição de duas crews de peso: a Tsunami All-Stars, que reúne gigantes do Breaking no Brasil recebeu, diretamente da Califórnia, a Squadron Crew. O Kalamidade não esteve presente no sábado pois estávamos tendo a nossa própria festa lá Zona Oeste de São Paulo, mas o vídeo desta disputa de crews está disponível no YouTube.
Ainda na sexta, porém, pudemos acompanhar a Batalha do Chinelo. Idealizada por Pelezinho, a batalha exige que os b-boys e b-girls usem esse calçado tão icônico, sem deixá-lo cair ou estourar. Nestas ocasiões o participante era alvejado por chinelos, galinhas de borracha e sofria com o som dos apitos distribuídos ao público. Pelezinho ainda ressaltou como o chinelo faz parte da cultura brasileira: além de servir sua utilidade principal de calçado confortável e barato, já foi muito usado como as traves em um jogo de futebol na rua ou até no lugar de uma pá de pedreiro em uma obra.
Em uma chave divertidíssima, convidados se juntaram a outros participantes escolhidos pelos jurados com base no desempenho demonstrado ali na hora. O título e o prêmio ficaram com o b-boy Bart, que já participou da final mundial do Red Bull BC One.
As danças urbanas englobam um conjunto muito maior que apenas o Breaking e, nesta edição, foi realizada a primeira batalha Passinho Tá Na Casa. A competição uniu o Passinho, tão popular nos bailes brasileiros, e o House, que vem em uma onda muito forte nos últimos tempos. É de se pensar se os idealizadores se ligaram nessa nova onda ou se sabem que o House sempre esteve aí firme e forte (eu aposto nessa opção). O título ficou com a dupla Mel e Khalifa.
A final
Com o evento principal marcado para às 19h do domingo com transmissão em rede nacional, no STREETOPIA a fila para a quadra em que a final aconteceria já se formou por volta das 17h. Tudo correu bem, exceto pela incerteza da possibilidade do público sentar-se no chão logo ao redor da cypher: a grande maioria já estava acomodada nas arquibancadas quando a área foi liberada.
Com apresentação dos MCs Uiu e Aline e as batidas do DJ MF, a cypher pegou fogo com batalhas incríveis nas duas chaves. Sobre elas, a própria Aline disse muitas vezes durante a noite “ainda bem que eu sou MC e não jurado” porque as coisas estavam complicadas para decidir. Eu também digo que ainda bem que sou fotógrafo e não entro no mérito de quem esteve melhor em qual disputa. Mas quem teve essa responsabilidade tem bastante moral para julgar: Andrezinho, lenda do Breaking brasileiro, o francês-argelino Lilou, bicampeão do Red Bull BC One, e a francesa Sarah Bee, que também já levou esse título, foram os jurados.
Leony levou o título da chave dos b-boys enquanto Maia foi a campeã entre as b-girls. Ambos participarão da Last Chance Cypher, evento que reúne os campeões de todas as cyphers nacionais realizadas no mundo e que seleciona um para integrar a chave da Red Bull BC One Finals. Ambas as competições acontecem em novembro deste ano em Nova York.
Dá pra melhorar?
Bom, sempre dá. Por mais que eu tenha apreciado o evento e elogiado aqui neste texto, há sempre um espacinho para melhoras. A questão de sentar-se ao redor da cypher poderia ter sido melhor comunicada com antecedência, mas não foi um grande problema. Além disso, é notável a presença de b-boys e b-girls da região Norte do Brasil na cena, mas nenhuma das Cyphers regionais foi realizada lá. Ainda que o Ceará esteja relativamente próximo, talvez tivéssemos mais Leonys despontando com uma quinta Cypher em Belém ou Manaus, por exemplo. E sim, b-boys lá do Norte vieram para a Cypher regional de São Paulo tentar vaga na final.
No mais, o evento ensinou muita coisa: diretamente a quem estava lá, por meio de todas as conversas e workshops, mas também indiretamente, com sua estrutura e programação que permitiu que toda a cultura Hip-Hop se manifestasse. Em uma das festas aqui do Kalamidade, o MC Dow Raiz disse que o objetivo dele nos shows é que todo mundo saia de lá melhor do que entrou, quem colou sabe. Do show dele eu saí melhor, e do Red Bull BC One Camp também, com certeza.
Nas vésperas do Breaking receber os holofotes olímpicos, muito se discute quais serão os impactos positivos e negativos que se seguirão. Para quem já está na cena há muito tempo, para quem está chegando agora ou para quem ainda vai chegar, eventos como esse são importantes para aprender e ensinar como se valorizar uma cultura que não pode se perder.