É de sabedoria belorizontina que todo início de mês na primeira sexta pós quinto dia útil, a Casa Sapucaí hospeda a Beagrime para “o evento”, e recebe um público que vai preparado para curtir sets de Jungle, House, Grime, Drill, DnB e Garage. Durante o show do ruadois, é possível escutar Well e Mirral ONE esbravejando no mic, “isso é Garage Brasil, você tá ouvindo primeiro aqui, ninguém faz o que nós faz…” e de fato, Proibido Estacionar – Vol. 1, é uma das maiores referências de Garage no Brasil atualmente, movimentando uma cena que abraçou todos os gêneros e subgêneros da Dance Music, e colocando o BR no mapa dessa febre que carrega consigo a nostalgia do fim dos anos 90.
Dos portões da “New York’s Paradise Garage”, com uma conexão importantíssima no Reino Unido, até ser considerado parte da culpa pelas chuvas torrenciais de janeiro em Belo Horizonte, o Garage vem fazendo um comeback importante no meio musical principalmente na cena brasileira, em que DJs e artistas têm encontrado novas maneiras de inovar retomando gêneros que estavam “abandonados” pela indústria e pelo público. Diferente de gêneros como House e Techno que ressurgem com maior frequência, o Garage tende a se mover em ciclos, desde que o termo foi usado pela primeira vez para descrever um som House mais rápido e cheio de alma.
A história do Garage começa nos Estados Unidos, onde os DJs fizeram uma mistura eclética de diferentes gêneros, incluindo Pop-Rock, Disco, Rap e Soul. Em um clube LGBTQIA+ conhecido como “Paradise Garage” em Nova York, o DJ Larry Levan costumava tocar uma fusão variada de música Soul, essas músicas eram conhecidas como “música de garagem”.
“Terror dessa Jungle”
As “músicas de garagem” originaram algumas variantes britânicas, incluindo Speed Garage que se ramificou em: 4/4 Resurgence, Bassline, UK Funky; e o 2-step que se ramificou em Breakstep, Nu Dark Swing, e Grime, que são considerados Dubstep. Todos esses gêneros e subgêneros acabaram sendo rotulados como UK Garage. O gênero se fixou a partir da evolução do Speed Garage, que substituiu as dominações do Jungle e Drum “n” Bass como os estilos mais em alta nas noitadas, e os fatores unificadores em todas essas formas eram as linhas de baixo sincopadas e a percussão. Linhas de baixo profundas são a assinatura do Garage, especialmente linhas de sub-baixo, que de vez em quando podem ser dobradas.
O Garage se destacou de seu antecessor na Dance Music, o Jungle, por uma batida mais lenta, mas ainda assim constante, de aproximadamente 130 batidas por minuto (BPM), a percussão sendo definida por um bumbo pesado e uma caixa forte com hi-hats abertos e fechados. Como os DJs aumentavam o ritmo das primeiras faixas das músicas de garagem para criar o Speed Garage, eles costumavam tocar versões Dub, o que removia os vocais acelerados e em algumas vezes indecifráveis. Como resultado, os MCs se inspiravam nos sistemas de som jamaicanos, nas rádios piratas, e rimavam junto com as faixas.
O Mainstream
É necessário entender como o Garage agitou uma movimentação da música eletrônica e como sua entrada no mainstream se deu de forma progressiva. Em 1988, com o lançamento de uma compilação chamada “The Garage Sound Of Deepest New York” pela Republic Records, a importação do Garage se iniciou pelo Reino Unido. Com uma seleção de 10 faixas, a compilação reunia as músicas que os primeiros adeptos da música de garagem, como o DJ britânico Dave Lee (Joey Negro), lançavam na pista.
Por ser uma cena tão jovem no mercado, no Reino Unido não existiam DJs de Garage, ou que se propusessem a fazer apenas um set de Garage, com isso foi preciso que um DJ estadunidense lançasse alguns remixes para que o gênero atingisse um maior destaque. “Locked on. Inside the Mix“, lançado pelo DJ Todd Edwards com faixas e remixes de George Morel, MK, Armand Van Helden, David Morales e Kerri Chandler fez muito sucesso, e a faixa “Never Gonna Let You Go” de Tina Morris, é creditada como a grande responsável pelo grande primeiro salto do Garage.
Pelos altos preços da importação de discos dos Estados Unidos na época, alguns produtores começaram a fazer seus próprios discos de Garage com o toque britânico, dando origem ao UK Garage, lançando-os em gravadoras menores como “Nice’N’Ripe” e “Swing City“. Com essa emergência em lançar um som produzido 100% made in UK, logo DJs como Tuff Jam, Norris Da Boss Windross, DJ EZ e Dizzie Rascal começaram a incorporar mais Garage em seus sets, abrindo mais uma margem para a ascensão do gênero em seu território.
Hospedado por clubes como o “The Elephant & Castle“ e rádios piratas como a “KISS FM“, o Speed Garage começou a receber muita atenção da mídia e interesse das grandes gravadoras que queriam entrar na onda, surgindo toneladas e toneladas de compilações inundando o Reino Unido.
As minas no UK Garage
Com a entrada para o mainstream e a dominação nas pistas de dança, o surgimento de grupos e artistas femininas fazendo Garage cresceu em proporções gigantescas. Sabendo que o Garage se iniciou a partir de montagens e remixes de músicas Soul e R&B, muitas das vozes femininas nas faixas de UKG eram samples de cantoras de Soul norte-americanas. Essas vozes não estavam realmente ao vivo nos clubes, mas abriram as portas para que artistas femininas britânicas surgissem em faixas fresquinhas, e sendo precursoras para a explosão do Brit Pop.
Grupos como “Sweet Female Attitude’s” e seu hit “Flowers” lançado em 2000, é um ótimo exemplo pela sua performance no UK charts pegando a segunda colocação, e trazendo uma vibe mais de lovesong inocente que conquistou muitas jovens e adolescentes da época.
Outros nomes como, Ms. Dynamite e Lisa Maffia, iniciaram suas carreiras como MCs em grandes grupos. Ms. Dynamite, que rimava de brincadeira até disputar lugar nas rádios em um ambiente dominado por homens, foi apresentada ao produtor Sticky que produziu seu álbum “A Little Deeper” de 2002, enquanto Lisa Maffia no “So Solid Crew“, onde era a única mulher, conseguiu o feito de lançar o verso mais memorável da cena do Garage em 2001, com a música “21 seconds“.
Ambas começaram com muitas dificuldades, além da sexualização por parte do público e da mídia, elas estavam em um território musical dominado por homens, só encontrando espaço em rádios piratas. Já cantoras como, Shola Ama e Kele Le Roc, tiveram suas músicas pop remixadas em batidas de Garage e passaram para a cena do clube underground. “Things we do for Love“, o maior sucesso do álbum “UK Garage Beats V4” do DJ e produtor Sticky, é cantada por Kele Le Roc e você provavelmente já ouviu por aí, sampleada pela Recayd Mob em “plaqtudum” e Yung Buda em “Katana & Pistola“.
O impacto feminista positivo que o UK Garage originalmente teve levou a um aumento da presença de mulheres na pista de dança, e uma forte preferência por vocais femininos significava que você também podia ouvir artistas mulheres. Vozes como do grupo Mis-Teeq e Shola Ama, que fez a transição de pop star para queridinha underground através de uma série de remixes, estavam nas paradas e nas rádios diurnas; sets de DJs como os de Lynda Phoenix, Donna Dee e Emma Felina contemplavam a presença feminina nas picapes, e Ms. Dynamite começou a enfeitar as listas de final de ano de todos os críticos. Nos bastidores, um número alto de mulheres estava quebrando barreiras para produzir eventos e deixar seu lugar marcado na história do UKG.
Garage é política
No início dos anos 2000, a cena foi cada vez mais deturpada pela mídia e pelos políticos. As gangues se envolveram para controlar o tráfico dentro das boates, e o governo introduziu o controverso formulário de avaliação de risco, conhecido como Formulário 696, exigindo dos promotores de eventos detalhes do tipo de música tocada e a etnia do seu público. O Garage sempre foi uma cena predominantemente negra, e a forma como era vista por muitos como discriminação, atingiu a música negra underground de muitas formas, principalmente no Reino Unido. Com suas festas proibidas por um tempo, o UK Garage não tinha onde existir, a mídia foi em partes grande culpada disso, por demonizar grupos como o So Solid Crew.
A primeira onda de Garage estava efetivamente terminada. Mas sua influência era grande sobre os subgêneros que emergiram de suas cinzas. Artistas mais darks do Garage, como Horsepower Productions e Zed Bias, substituíram os samples de Soul e fizeram sons mais “macabros” que eventualmente se tornaram Dubstep. O fim do Garage mais Soul e orientado para o R&B tornou-se popularizado por grandes artistas das paradas do Reino Unido como Craig David e MC Luck & MC Neat, e o papel do MC de Garage tornou-se cada vez mais proeminente, eventualmente dando origem ao Grime.
Declínio e recomeço
Com o investimento de gravadoras e o grande sucesso midiático, o declínio do UKG se deu pela saturação da cena. Todo mundo queria fazer UKG e os números de gente fazendo Garage cresceu, enquanto sua qualidade caía em mesma proporção. Esse “fim” também vem de uma revolução que ocorria dentro dos clubes, onde o Speed Garage foi sendo trocado pelo som mais dark de DJ Narrows separando um tanto a cena em si. Nos Clubes, a violência foi crescendo o que também foi um fator para a dispersão do público e a diminuição das festas.
Não foi da noite para o dia, mas antes que se percebesse sua ascensão, a cena do UK Garage estava em um acentuado declínio. A cena antes efervescente, estava sendo excluída dos clubes, tocando menos nas rádios legais e aparecendo na mídia negativamente com as prisões de membros de grupos como So Solid. Mesmo com a explosão do “UK Funky“, que basicamente era um UKG, mantendo as mesmas estruturas de composição e melodia, mudando apenas os padrões de bateria 2step que foram substituídos por batidas afro, o novo gênero não atingiu o patamar de seu antecessor, mas fez algumas estrelas, como Crazy Cousinz e Katy B.
Com suas variações fazendo maior sucesso, como o Grime, além do ressurgimento 4/4 do som dos anos 90, onde ex-produtores de Dubstep lançavam sons mais Techno e Footwork, o estado atual da cena é absolutamente inspirador, mas também pode sofrer de seus altos e baixos. É contagiante acompanhar a quantidade de novos talentos como Preditah, Swindle, Flava D, Visionist, MssingNo e outros fazendo grandes coisas pelo underground, o que mantém o gênero sempre ativo.
Isso é Garage Brasil!
Em 2003, sem que ninguém imaginasse, a cantora Kelly Key fez um Garage. Sim, o single “Adoleta” produzido pelo DJ Cuca é um Garage em toda a sua estrutura instrumental, e sua linguagem que dialoga com o Pop. Não é nada surpreendente artistas reproduzirem no Braza um gênero que bombou na gringa, mas quando ele chegou aqui já estava em declínio lá, e os artistas Pop estavam de fato fazendo Pop.
Como o declínio gerou diversas variações, o Brasil não acompanhou em si essa diversidade e o Garage fez um debut que durou só um single. Anos se passaram e foi só na última década que ele vem tentando trazer sua volta. Assim como começou no início dos anos 90, é através de DJs e eventos que o Garage vem sendo apresentado para um público “leigo”, e ressurgindo das sombras da música eletrônica como um todo.
Em 2020, O EP “Favela Garage Beats” do produtor musical e DJ Brunoso foi concebido no Maranhão e conquistou um grande público, aparecendo na playlist oficial de Garage do Spotify. O Nordeste é o estado quando se pensa em Garage e suas ramificações, além de Brunoso, Wavezim de Fortaleza produziu “Me pega assim“, além do pioneirismo do Grime por meio do baiano VANDAL.
Já no Sudeste, “BRIME!” de Febem, Fleezus e CESRV, fazia uma fusão de Funk com Garage na faixa “Terceiro Mundo“, e com a popularidade do álbum e aceitação do público, os caminhos para o Grime e o Garage se abriram, com artistas retomando o gênero nas pistas. Alt Niss e Budah lançaram “Imensidão” produzida por Jovelli, e o Rio de Janeiro também não quis ficar para trás nessa retomada. O álbum “40°.40” do artista SD9 em sua décima faixa, “Oi“, produzida por DIIGO é um Garage com House fascinante, o que acabou fazendo com que logo no fim de 2021 Luccas Carlos lançasse “Pensando Coisas 2“, single surpreendente que é um Garage muito bem produzido pelo Nave, mantendo a identidade já conhecida de Luccas.
Como era de se esperar, Minas Gerais também virou um polo para o estabelecimento do Garage. Começando pelo DJ e Produtor CHEDIAK de Juiz de Fora, que descobriu o Garage em 2016 pesquisando sobre Todd Edwards, ele se apaixonou pelo som e produz seus sets nessa vertente, trazendo uma versão fusionada e envolvente de Garage com French House, estabelecendo sua identidade e estilo. Em Belo Horizonte a cena veio com tudo em 2021, o single “PEITA” do Contagense GDD deu a largada logo em Maio, seguido por “fml” de Well com Mirral ONE e BAKKARI, produzida pelo georgeluqas.
Através desses caras que a revolução do Garage tomou conta da capital mineira, sendo consolidada pelo lançamento do EP “Proibido Estacionar Vol.1” do ruadois (Well, Mirral ONE, georgeluqas e DJ Akila), que além de tudo ainda produz a festa Beagrime, contemplando toda a cena do UKG, além do Jungle, DnB e House, ressalva para o set da DJ Akila onde o Garage predomina.
O mundo está pronto para aceitar o UKG novamente, e as pistas são o seu território, onde DJ, público e MC se fundem e trazem novas perspectivas de um rolê diversificado na cultura da música eletrônica. Com essa dominação dos holofotes, parece que finalmente ele fechou um círculo. Mas desta vez, muitos dos principais atores da cena estão usando lições do passado para construir um futuro mais sustentável, confiante e identitário. E o caminho a seguir para a UKG, nunca foi tão brilhante.