Lançado no ano passado, documentário conta como a primeira Casa do Hip-Hop criado pelo Geledés influenciou o Rap no Brasil
Refletindo sobre a essência do movimento Hip-Hop, topei com uma ideia sobre a cultura que talvez soe estranha nesses tempos online: a rua sempre foi o ponto de conexão do nosso movimento.
Quem acompanha o Hip-Hop sente que há diversas formas de expressar-se, seja comandando as controladoras, fazendo batidas, ou explorando a dança, em todas a verdade é que a rua é um constante palco do movimento. Entretanto, para continuar na rua, foi com a organização de mulheres negras que o Rap encontrou seu caminho até aqui.
No ano passado, MC Sharylaine e Clodoaldo Arruda dirigiram o documentário Projeto Rappers: A Primeira Casa do Hip Hop Brasileiro, disponível de graça no YouTube. O documentário explora a história do Projeto Rappers e o seu impacto político para o Hip-Hop. O projeto durou de 1992 a 1998, se tornou um marco na promoção da nossa cultura, proporcionando espaço de formação política de artistas e criando a Primeira Casa do Hip-Hop Brasileiro.
Cumé que a gente fica?
Lélia Gonzalez, 1980
É na década de 1980 que o Hip-Hop começa a se espalhar entre a juventude preta brasileira. O movimento chega em meio a uma panela de pressão econômica, política e social com a crise da dívida externa, alta inflação, a vigência da ditadura militar e os obstáculos persistentes em termos de acesso à educação, saúde e oportunidades de emprego para pessoas pobres e pretas.
Na cidade de São Paulo, a perseguição aos pretos era produzida por verdadeiros inimigos, com a ação de grupos de extermínio e a perseguição do Estado através das polícias. É por conta dessa perseguição que a sociedade brasileira começa a se organizar com movimentos sociais e culturais que reivindicam direitos e a defesa da população negra.
A disseminação da cultura afro-brasileira, manifestada em diversas formas artísticas, contribuiu para fortalecer a identidade negra e estimular o debate sobre a inclusão e a igualdade racial no Brasil. Por muitos anos, a atuação de tantos movimentos, como o Movimento Negro Unificado, tiveram um papel ativo e decisivo, consolidando-se como uma voz importante na luta contra a discriminação racial e a busca por direitos civis.
Geledés, Instituto da Mulher Negra
No ano do fim da ditadura, mulheres negras – lendárias – se organizaram em sociedade civil pela defesa de mulheres e homens pretos criando o Geledés, Instituto da Mulher Negra. Fundado por Sueli Carneiro, Solimar Carneiro, Edna Roland, Nilza Iraci, Ana Lucia Xavier Teixeira, Maria Lucia da Silva e muitas mulheres notáveis, tornou-se uma referência na luta pelos direitos das mulheres negras no Brasil.
Geledés não se contentou em ser apenas mais um capítulo na história, foi além, atuando em diversas frentes, buscando não apenas a visibilidade das mulheres negras, mas também a promoção de políticas públicas que desvendassem as complexidades de gênero e raça.
Em 1990, o rapper Marcelo perdeu sua vida por estar fazendo apenas Rap no vagão de um trem. O caso de Marcelo foi emblemático e denunciava o que acontecia repetidamente na cidade de São Paulo: rappers expressando sua arte eram bruscamente retirados do palco e acusados pela polícia de desacato. Uma das iniciativas criadas pelo Instituto, o S.O.S Racismo, começou a receber denúncias com muitos desses ocorridos e criou um alerta para a organização. Em uma homenagem a Marcelo, Deise Benedito foi convidada pelos rappers da época a pensar um novo direcionamento e mudar esse cenário enfrentado pela juventude na cidade de São Paulo. Era necessário fazer algo.
Da Rua pra Casa, de Casa para a Rua
O Hip-Hop, uma expressão artística enraizada na vivência da população negra e pobre, desempenha o papel de denunciar o massacre sofrido por esse povo, sua cultura e história. Nesse contexto, o Projeto Rappers surge no mesmo ano do trágico massacre do Carandiru, com o propósito fundamental de garantir que as denúncias contidas no Hip-Hop não apenas persistam, mas também gerem transformações significativas. Como diz Lélia Gonzales, enquanto houver violência, “o lixo vai falar”, o projeto se comprometeu a dar armas para que as narrativas oprimida façam suas denúncias.
O novo estilo musical estava se expandindo e agora contava com uma poderosa ajuda de ativistas negras que poderiam pensar como o Hip-Hop iria além. Várias foram as ações criadas pelo projeto – como por exemplo a Revista Pode Crê! – e todas trazendo uma formação política necessária para a sobrevivência do movimento nos anos 1990.
No documentário, Sueli Carneiro e Solimar Carneiro refletem sobre um fato importante para a manutenção do projeto. Geledés decidiu assinar a carteira de trabalho dos jovens. O emprego sempre foi um instrumento de controle das elites sobre as pessoas pobres, como por exemplo, nos anos 1940, o desemprego dos negros era visto como “vadiagem”, com direito a lei e tudo mais. Para Solimar Carneiro, uma carteira assinada era um instrumento de proteção para homens negros.
Geledés: a formação política do Hip-Hop brasileiro
Ao assumir esse risco, o Instituto sabia do ideal por trás: munir essa geração de mais ideias e reflexões para denunciar e lutar contra o extermínio do nosso povo. Todas as estratégias deveriam ser usadas a fim de preservar a juventude negra. Em 1992, o grande OG Xis, Max e outros rappers, têm suas carteiras assinadas, se tornando um agentes culturais, motoboys e tendo diversas ocupações dentro do Geledés.
O Hip-Hop é da rua, mas precisou de uma Casa para se formar criticamente e politicamente. Durante os anos de atuação, o projeto ganhou uma casa que virou um embrião das Casas de Hip-Hop espalhadas na cidade de São Paulo e, pode-se dizer, a primeira Casa que pensou a formação política do Hip-Hop nacional. Se o que fazemos em casa, repetimos na rua, a Casa do Projeto Rappers continuou perpetuando, nos anos seguintes, as lições aprendidas na rua.
Os anos 2000 foram marcados pelo discurso fortificado feito pelos Racionais, Sabotage, RZO, Facção Central e muitos outros artistas que foram impactados pelo que o projeto estava realizando. O Projeto Rappers reforçou a ideia de que a formação política é uma arma poderosa, capaz de transcender as barreiras da música e influenciar a sociedade de maneiras profundas e transformadoras.
Nesse panorama de resistência e evolução do Rap Nacional, o passado se entrelaça com o presente, destacando a importância vital das mulheres negras que, no passado, criaram um espaço onde era possível pensar jeitos de se lutar contra a opressão policial e o racismo. O Geledés desempenhou um papel fundamental na formação política do Hip-Hop brasileiro, proporcionando não apenas um espaço de resistência, mas também uma casa onde ideias e reflexões floresceram.
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Texto por: Biatriz Lima