A cena dos Bailes na criação do Hip-Hop nacional

Como os bailes blacks influenciaram na criação do Hip-Hop nacional e fortaleceram a cena no Brasil aproximando a cultura das nossas raízes

Foi num Baile Black

Se hoje nós temos uma cena Hip-Hop forte no Brasil – sendo o terceiro país que mais consome Rap no mundo – uma porção considerável desse crédito se deve à cena dos Bailes Blacks. Ambiente familiar de muitos pioneiros do movimento aqui no país, bailes como a Chic Show, Zimbabwe, Kaskatas, Circuit Power em São Paulo e Soul Grand Prix, Baile da Pesada e movimento Black Rio no RJ, eram a expressão mais viva do Soul, Funk e Samba Rock no Brasil.

As centenas de bailes blacks, que iniciaram nos anos 60 e tiveram seu auge nos anos 70 e 80, eram a herança repaginada da Orquestra Invisível de Seu Osvaldo – um marco de quando os toca discos substituíram as bandas. Eram o reduto cultural do movimento negro, muito impulsionado pelo Black is Beautiful lá de fora, mas com a realidade brasileira batendo na porta: os tempos de ditadura – com perseguição e censura – nunca os deixavam esquecer que viviam no Terceiro Mundo.

Enquanto Kool Herc dava as primeiras festas em NY e marcava o que hoje temos como o início do Hip-Hop (lá em 1973), James Brown vinha para o Brasil pela Chic Show (1974). Lá, Sugarhill Gang & Sylvia Robinson lançavam Rapper’s Delight (1979), aqui Earth, Wind & Fire fazia show no Brasil (1980). E não pensem que essa troca cultural aconteceu só de lá pra cá não. Posteriormente, ícones como Afrika Bambaataa aparecem no doc de Gerson King Combo saudando o brasileiro e dizendo que admiram o tocam seus sons por lá.

Se por aqui nos anos 80 o dresscode dos rolês ainda eram as calças boca de sino e sapato social, o Hip-Hop vem pra mudar isso. O breaking que já era realidade no Brasil (falamos dele no nosso último podcast) tinha uma estética mais urbana, com os kit de moletom, boné, corrente e tênis. O que antes passava só nos telões dos bailes, agora era realidade nas pistas também. Beleza que teve um pouquinho de resistência, mas um evento foi crucial para a aceitação e inevitável febre do Hip-Hop por aqui.

Chic Show convida Kool Moe Dee

Se por aqui o Hip-Hop começou pela dança, não demorou muito pro elemento DJ vir logo em seguida. E um marco histórico para os DJs de Hip-Hop foi a vinda de Kool Moe Dee & DJ Easy Lee, o primeiro grupo de Rap da gringa a tocar no Brasil, isso em janeiro de 1988. Diferente de James Brown e Earth, Wind & Fire, o som não era cantado e sim falado e a banda também foi substituída pelos toca discos. Foi nesse dia que vimos os primeiros scratches ao vivo. Foi nesse dia que KL Jay resolveu virar DJ.

Segundo o DJ Easy Nylon (105 FM) no doc da Chic Show do Globoplay, Easy Lee pediu um disco nacional para tocar e deram pra ele o LP do Tim Maia, que tinha a música “Você Mentiu”. E com ele, o DJ começou a fazer um back to back com o refrão e levou todo mundo à loucura.

DJ Hum também foi frequentador assíduo dos Bailes Black, em uma entrevista pro Bocada Forte ele solta:

Devo o sucesso da minha carreira aos grandes Bailes Blacks. (…) Se vencemos e hoje o Rap está popular é porque lá atrás os Bailes deram a cara a tapa e foram os primeiros contratantes dos shows de Rap.

Os selos de grupos de Baile e as primeiras coletâneas de Rap

Natanael Valêncio e DJ Grandmaster Ney, DJs da Chic Show, abriram os braços pro Hip-Hop brasileiro. Eles ajudaram a formar a ponte entre a São Bento e os Bailes, o que desaguou no Clube do Rap. O Clube eram noites especiais onde a Chic Show organizava concursos em que muitos DJs e MCs foram revelados ao estilo de show de calouros. Quem se destacasse pelas performances era premiado com a gravação de uma ou duas faixas em estúdio.

Isso resultou em uma das primeiras coletâneas de Rap no Brasil, “O Som das Ruas” (1988), lançada pelo selo Chic Show junto à Epic (da Sony), que revelou artistas e grupos como Ndee Naldinho, Sampa Crew, DJ Cuca e Os Metralhas. Posteriormente também lançou “Caixinha de Surpresa” (1992), de Pepeu, “Vítima Fatal” (1992) de Vítima Fatal e “4 Anos Depois…”, d’Os Metralhas (DJ Dri e Lino Krizz) em 1993.

Na verdade, muitas das coletâneas de Rap lançadas nesta época eram de gravadoras/selos de grupos de baile. Esses concursos e competições de novos artistas se popularizaram e cada equipe começou a gravar seus artistas, passando a divulgar os trabalhos tocando nos próprios bailes ou nos seus programas de rádio. Uma que rolou até antes de “O Som das Ruas” foi o “Ousadia do Rap” (1987) que saiu pelo Kaskata’s, selo de outra equipe de baile crucial para os primeiros registros do Rap Nacional.

O Kaskata’s também lançou “The Culture of Rap” (1989), de Pepeu, “A Ousadia Do Rap De Brasília” (1990) de DJ Raffa (Santoro) & Os Magrellos, “Ritmo Amor Poesia” (1990) de Sampa Crew, “Para Quem Quiser Ver” (1994) que foi o primeiro álbum de Doctor MC’s, “Sociedade Alternativa Elas Por Elas” (1994)  a importantíssima primeira coletânea de Rap 100% feminina e “Na Sua Mais Perfeita Ignorância” (1995) primeiro álbum do De Menos Crime. Tudo isso em meio a clássicos do Pagode, como “O Canto da Razão” (1993) do Art Popular.

A terceira gravadora – mas não menos importante – que veio de grupos de baile e impulsionou as produções do Rap no Brasil foi a Zimbabwe, que lançou a clássica coletânea “Consciência Black Vol 1” (1990). Esse disco reuniu artistas que viriam a se juntar e se tornar os Racionais MC’s, e também uma griô importantíssima para a cena, Sharylaine. Em 1993 lançou a coletânea “Algo A Dizer Vol. 1” com Athaliba Man, Lady Rap, M.R.N entre outros, com produção de DJ Cri Cri e KL Jay.

A Zimbabwe gravou os três primeiros discos do Racionais até a criação do Cosa Nostra: “Holocausto Urbano” (1991),  “Escolha O Seu Caminho” (1992) e “Raio X Brasil – Liberdade De Expressão” (1993), além do primeiro álbum do DMN “Cada Vez + Preto” (1994) e o álbum homônimo de Potencial 3 em 1995.

Sem as equipes de baile, a história do Hip-Hop no Brasil com certeza teria sido diferente. Muito provavelmente, ou mais embranquecida, ou com menos estrutura. Ter coletivos pretos com a potência e estrura que teve a Chic Show, por exemplo, com certeza rendeu muitos frutos ao Hip-Hop.

Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre a chegada da cultura Hip-Hop no Brasil, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!

Leia Mais
Buzoe Ferrez
Sobre Literatura e Hip-Hop: dois dedos de prosa