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Trama Virtual, tecnologias e memória no Rap BR

O que acontece quando um site morre?

Lembro que um professor da faculdade uma vez comentou em classe que os períodos de transição entre uma era e outra eram caracterizados por serem anos de quebra e criações de novos paradigmas, além de serem anos cuja maioria das pessoas tinha uma vaga memória do que aconteceu na época. Enfim, não lembro direito. Já faz muito tempo. Esqueci…mas fato é que olhando pro nosso quintal e mais especificamente para o que aconteceu com a música Rap, a virada do milênio (fim dos anos 90 e começo dos anos 2000) foi uma época chave para a consolidação do gênero no game e nos meios de comunicação brasileiros.

Era de Ouro do Hip-Hop brasileiro

Estamos falando da Era de Ouro do Hip-Hop brasileiro aqui. Uma época onde tínhamos  o Espaço Rap na rádio – sem falar nas inúmeras rádios comunitárias -, a Yo! MTV e o Manos e Minas garantindo um espaço nas telinhas enquanto a revista Rap Brasil fazia a contenção nas bancas.

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Apesar de ser uma época muito rica para o Rap, de quebra da hegemonia cultural pós-ditadura, é importante lembrar que ainda estamos falando de um período pré-internet e as gravadoras representavam uma primeira barreira para a difusão do Rap por aqui. Se não fossem os bailes blacks fortalecendo a cena nacional com suas coletâneas e álbuns solo de alguns artistas, seria impossível “Fim de Semana no Parque”, do Racionais ter furado a bolha do Hip-Hop e chegar na programação das rádios mainstream.

Contudo, quando pensamos no acesso a esses espaços e gravadoras, percebemos que ele era restrito àqueles que já tinham uma certa visibilidade na cena. Principalmente se pensarmos em todo o trampo e dinheiro envolvido na gravação de um álbum solo – e até por isso, as coletâneas eram tão populares. Era preciso gastar muita sola de sapato no corre de panfletagem nas saídas de bailes, porta das escolas e espalhando cartazes pela cidade a fim de conseguir se promover.

Também foram poucas as iniciativas como a Revista OutraCoisa, idealizada pelo Lobão e financiada pela Lei Rouanet, que faziam uma curadoria de artistas do underground e produziam CDs que eram vendidos nas bancas de jornais (“Enxugando Gelo”, do BNegão e “Piratão”, do Quinto Andar saíram pela OutraCoisa).

A popularização do acesso às tecnologias

O acesso às novas tecnologias sempre foi restrito àqueles que poderiam pagar por elas. Mas já pensou como seria se essas tecnologias fossem acessadas por todos?

1977 foi um ano marcante na história do Hip-Hop nos EUA. Uma falha no sistema de distribuição de eletricidade em Nova York fez com que a cidade vivesse um grande apagão de mais de 30 horas, levando a uma gigantesca onda de roubos e saques pela cidade que resultou em mais de um terço de todos os aparelhos de som e vinis sendo furtados das lojas.

Esses equipamentos que antes eram restritos a quem podia pagar pelos preços altíssimos, agora nas mãos da população, levaram a um aumento de festas nas comunidades e como consequência a popularização das técnicas inventadas pelo Kool Herc e todas as outras técnicas de rima, de dança, etc.

Os primeiros computadores surgiram em 1981 e na mesma década, o Fuity Loops já tinha sido lançado. Mas foi só na década seguinte que o acesso aos computadores começou a se popularizar e daí, praticamente mais 10 anos pro Emicida gravar em casa a mixtape que ia mudar a vida dele (e a nossa).

Se o acesso às tecnologias para produzir estava cada vez mais fácil, a distribuição de música ainda era restrita às grandes gravadoras ou a casos como o da Revista OutraCoisa, que recebiam algum incentivo para distribuir música independente. Porém, a internet chegava com força para mudar esse cenário.

A Trama Virtual

Mudanças radicais geram estranhamento, até medo em alguns casos e não foi diferente no mercado de distribuição de música com a popularização da internet. Com a chegada de sites e programas que permitiam compartilhar e baixar músicas gratuitamente, como o Napster, as gravadoras viram o seu monopólio ameaçado e as vendas de CDs despencaram no início dos anos 2000.

Foi no meio desse caos que em 2002 foi lançado o site Trama Virtual, projeto da gravadora Trama, que por meio de uma gambiarra revolucionou e ajudou a moldar a forma como consumimos música hoje em dia.

Aqui eu pego emprestada a definição de Giuliano Obici como sendo a gambiarra uma abordagem não convencional para resolver um problema usando a inventividade; a inteligência criativa e habilidade de bolar soluções para problemas. Como se adaptar a um mercado onde a pirataria estava cada vez mais presente e ainda por cima se manter relevante e atento às novas tendências que surgiam? A saída idealizada por André Szajman e Carlos Eduardo Miranda foi simples: download gratuito e de qualidade para os frequentadores do site.

Numa época onde o MySpace começava a ganhar popularidade e gigantes como o YouTube, iTunes, Bandcamp e SoundCloud nem existiam, a Trama Virtual foi pioneira. O site era um misto de site de notícias, blog, comunidades que facilitavam a troca entre artistas e fãs, ranking dos artistas mais ouvidos no site e plataforma de download com remuneração para os artistas. Contava também com curadoria própria que ouvia grande parte do que era upado na plataforma e produzia matérias e entrevistas com os artistas do underground que eles apostavam no sucesso.

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O site foi um sucesso, foi listado pelo NY Times numa lista de 11 sites internacionais para baixar mp3 legalmente e chegou a hospedar conteúdo de 78 mil artistas e 205 mil músicas no auge. Além de ter uma comunidade super ativa que era ótima para dar aquela pesquisada no que de novo estava surgindo. Artistas como GOG, Xis, Rappin Hood, Cansei de Ser Sexy, DJ Marky e Marcelinho da Lua são alguns dos nomes que disponibilizavam suas músicas por lá.

Em 2006, a relevância do site era tão grande que a Multishow fechou uma parceria com eles para a criação de uma versão para a TV. O programa contava com cinco quadros fixos: o Ao Vivo, mostrando a performance ao vivo dos artistas, além de uma entrevista; o Banho de Estúdio, em que uma banda de garagem tem oportunidade de entrar num estúdio profissional pela primeira vez; o Arquivo, que mostrava trechos de antigas entrevistas e apresentações; o Reportagem, cujo forte são matérias diversas sobre o cenário independente; e o Visitando a Cena, que abrirá espaço para a cobertura de eventos, shows e festivais.

Mas tudo que é bom dura pouco, apesar do modelo de negócios deles ser inovador, captando dinheiro através de publicidade no site que era revertido para os artistas, o site sofreu com a baixa procura por parcerias, muito devido ao receio das empresas de apoiar esse tipo de projeto num momento onde o Napster sofria vários processos das grandes gravadoras.

Além disso, a Trama Virtual não se reinventou e manteve seu formato preso à era da internet discada, não permitindo download de álbuns completos e mesmo tentando se renovar com o conceito de Álbum Virtual. Com a popularização de outras plataformas como o YouTube, Bandcamp e SoundCloud, o site enfrentou uma concorrência muito grande, acabou não conseguindo resolver todos seus problemas e veio a fechar as portas em 2012.

Vida após a morte

Apesar do fim da Trama Virtual não levar ao apagamento de todo seu acervo – o site só era responsável pela distribuição das músicas, as masters ficavam com os próprios artistas – o seu caso serve de exemplo para um debate cada vez mais urgente: e se um dia o YouTube sair do ar? Ou os serviços de streaming?

Esse é um debate que está muito em alta na bolha dos videogames, mas que é totalmente válido nesse contexto de um mundo cada vez mais digitalizado e concentrado nas mãos das grandes corporações. Fato é que, com exceção da febre dos vinis, cada vez mais as mídias físicas desaparecem e dão lugar às digitais. E numa época onde views e likes são a métrica que define o que vai ser mantido ou não nas plataformas, a diversidade cultural fica cada vez mais ameaçada, a própria história do underground fica cada vez mais ameaçada.

Ter acesso às obras de artistas de outrora e até mesmo aos contemporâneos a nós é de extrema importância e não falo isso apenas por ser DJ e me preocupar com a pesquisa musical. A música, seja um hit ou não, é reflexo da vivência de alguém inserido em um determinado contexto histórico, político e social de uma época específica. É conhecimento popular transmitido através de beat, rima e melodia. A própria arte de samplear faz parte da arte de contar uma história. E isso não pode se perder.

Esse é um debate que não tem resposta e que na verdade fica cada vez mais confuso à medida que vão surgindo coisas como a possibilidade da IA compor músicas, substituir vozes e samplear. Porque ao mesmo tempo em que a tecnologia pode representar uma ameaça para o mercado fonográfico, esse tipo de avanço tecnológico permite com seja cada vez mais acessível produzir um som ou aprender a mixar.

Novos paradigmas estão surgindo e sendo superados cada vez mais rápido ao mesmo tempo em que parece que nossa memória tende a só conseguir reter informações de curto prazo. Apesar de não achar que o YouTube ou o Spotify possam acabar e levar com eles minhas playlists, sets e álbuns favoritos, faço das palavras do Peste Negro meu mantra: pirataria é bom e eu gosto!

Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre o Geledés, Instituto da Mulher Negra e a formação política do Rap Nacional, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!

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