O que faz uma música ser boa? Pense na sua música favorita e tente listar um motivo pra essa música em particular ser a melhor música do mundo, mesmo com o passar do tempo.
Tirando toda a brisa mercadológica, a Arte em si carrega mensagens objetivas e subjetivas que geram um processo de identificação naquele que a consome. Como Stuart Hall bem define, a identificação é construída a partir do reconhecimento de alguma característica ou origem em comum partilhada por grupos ou pessoas, surgindo na narrativização do eu e sendo construída de forma a invocar uma origem, um passado histórico ou uma luta em comum. Ou seja, quando gostamos de uma música, nós nos identificamos com ela e nos reconhecemos como sujeitos que compartilham daquela realidade que está sendo contada.
Com os animes não é diferente. Em The Tao of Wu, segundo livro da Wu-Tang Clan, RZA fala um pouco sobre esse processo de reconhecimento que ocorreu entre a população preta dos Estados Unidos:
Dragon Ball Z é um dos cartoons mais profundos da história. Você aprende que Son Goku é parte de uma raça ancestral chamada Saiyajin, que veio de um planeta distante e é conhecida por ter os guerreiros mais ferozes da galáxia. Então, Goku tem superpoderes mas não se lembra disso – uma ferida na cabeça apagou sua memória, roubando o conhecimento que ele tinha de si. Então, um dia ele fica estressado além dos seus limites e seu alter ego é revelado, o Super Saiyajin.
RZA
crédito: @ogabrieljardim
Prólogo: um Japão fragmentado
A História é contada e contextualizada através de marcos e dos seus ecos ao longo do tempo. Até a Covid-19 a sociedade nunca havia passado por um momento tão marcante como este desde a 2ª Guerra Mundial, evento que culminou no bombardeio das cidades de Hiroshima e Nagasaki e teve como desfecho os anos da Guerra Fria.
Após os horrores da bomba atômica, resta apenas um Japão dizimado. Os traumas do pós-guerra ainda ecoam na sociedade e seu reflexo é percebido nos produtos da cultura popular japonesa. Em 1988 o mundo seria apresentado a Akira, anime que foi adaptado dos mangás pelo diretor Katsuhiro Otomo e que com seu universo pós-apocalíptico e ultra capitalista conquistou Kanye West e o ocidente.
Não é novidade para ninguém que o Hip-Hop tem uma relação de influência mútua com animes e mangás. Inclusive, o João escreveu uma matéria foda falando sobre isso. Mas ainda assim, como os animes se tornaram algo tão influente para o Hip-Hop? Como algo tão nichado e distinto consegue gerar uma identificação tão grande nas pessoas? Foi lendo um texto da Suspeito que eu tive uma ideia de como abordar o assunto.
Yu Yu Hakusho é um anime que ficou famoso pela maravilhosa dublagem feita pela Audio News em 1997 e que também serve para contextualizar parte dos efeitos da guerra no Japão. Através do personagem principal, Yusuke, é retratada a instabilidade social que o país passava no pós-guerra. Um dos efeitos foi o abandono parental que muitas crianças sofreram devido às rápidas mudanças que o Japão teve que passar para se reconstruir e cumprir as exigências feitas pelo bloco vencedor e que tinham como consequência longas jornadas de trabalho e crianças abandonadas à própria sorte.
Em um artigo de Haruo Matsubara, o autor afirma que após a rendição, a sociedade viu um colapso dos seus valores e como a rápida ocidentalização dos seus modos de viver causaram uma perda da identidade como povo. Ao mesmo tempo em que os sobreviventes da guerra casavam e tinham filhos, o sistema não conseguiu absorver toda a demanda e houve um período de grande pobreza no Japão. Superado o pós-guerra, o povo nipônico adota uma mentalidade de estabilidade e molda seu sistema educacional nos padrões de meritocracia onde as melhores escolas são apenas para os melhores alunos. E daí voltamos mais uma vez para o Yusuke, que, sempre entre os piores da turma, não vê futuro na educação e se encontra descendo a porrada nos demônios.
Outro aspecto marcante do pós-guerra eram os Sensō Koji, órfãos de guerra que em 1945 somavam mais de 120 mil crianças no Japão e tiveram parte da realidade dessas crianças retratadas no lindíssimo O Túmulo dos Vagalumes. Por outro lado, o Kaneda de Akira mostrava a realidade daqueles que, à margem de um sistema falho, acabavam se envolvendo com o crime e encontravam nas organizações um lugar de acolhimento, uma família e um propósito.
E como a guerra transformou os animes?
Susan Napier discute em seu livro que uma das características marcantes dos animes é a falta de comprometimento que eles têm com o público e como isso serve como meio perfeito para capturar a atmosfera de mudança e as questões que permeiam não só a sociedade japonesa, mas o mundo globalizado. Ela afirma que os problemas com a construção de uma identidade nacional que o país enfrenta até então são refletidos nos próprios traços e feições dos personagens, que quase nunca têm aparência asiática Sendo as representações de corpos metamorfoseados, e mesmo as proporções diferentes, uma forma de expressar uma noção de identidade que não é constante, que é adaptada conforme quem conta a história e o que deseja contar.
A fetichização do apocalipse não é algo novo na indústria audiovisual. Dos anos 50 aos 90, os Estados Unidos tiveram uma enxurrada de produções com a temática que iam desde o planeta sendo invadido (curiosamente sempre nos EUA) por aliens até a própria ameaça nuclear e terrorista. Mas foi no Japão que a temática ganhou camadas e complexidade ao abordar diferentes visões de apocalipse a partir do seu narrador. Afinal, o que faz Evangelion tão especial não são só robôs gigantes lutando com monstros mas a forma como o Hideaki Anno usa esse fato para pôr em cheque todos os ideais de um garoto enquanto ele luta entre aceitar ou não o seu papel na trama.
Do Pacífico pra lá, o mundo é diferente?
O consumo de arte vinda da Ásia não é algo recente na história do Hip-Hop. É algo que vem desde antes daquele dia em que o Kool Herc resolveu dar uma festa que iria marcar a história. Os filmes de kung-fu invadiram os Estados Unidos nos anos 70 e ganharam popularidade, principalmente entre a parcela não-branca do país, por ter protagonistas que tinham histórias cujo espectador poderia facilmente se reconhecer nelas. Veja, filmes de kung-fu nunca foram sobre alguém com poder, dinheiro ou fama. Em sua maioria era sobre pessoas comuns que se rebelam contra a injustiça e a opressão que sofrem, tornando-se heróis.
Dado esse histórico de sucesso comercial que a cultura asiática fez nos Estados Unidos durante toda as décadas de 70 e 80, junto com o sucesso que Akira faria nos cinemas no final da década, era mais do que esperado que a mídia norte-americana continuaria a trazer mais material produzido do outro lado do Pacífico. Porém, nada foi tão decisivo para consolidar os animes como uma fonte de referências para a cultura Hip-Hop quanto a criação do Toonami, um quadro noturno do Cartoon Network, em 1999.
Com uma programação voltada para o público mais adulto, a Toonami marcou época por exibir os animes sem os cortes e edições que eram feitos nos títulos vindos do Japão (finalmente as lutas mostravam sangue e não água). Foi também o primeiro bloco a desmistificar a origem das animações que eles transmitiam no programa, creditando o Japão e mantendo a originalidade das animações sem tentar adaptá-las ao gosto do público norte-americano. Durante os anos do Toonami, o quadro conseguiu criar um ecossistema muito completo na programação que iam de interações com o robô que apresentava o programa, a reviews de jogos e músicas. Gorillaz estreou seus clipes lá, assim como Interestellar 555, o curta do Daft Punk feito com animação no estilo japonês.
Daí pra frente, Hip-Hop e anime criaram uma relação de respeito e inspiração mútua. Seja através da identificação de elementos da diáspora africana na história de Dragon Ball Z, do desejo que sujeitos marginalizados e periféricos têm em serem reconhecidos pela sociedade, da história de Naruto ou mesmo de animes como Cowboy Beepop, Samurai Champloo ou The Boondocks. Fato é que a troca de valores e conhecimentos entre essas culturas ajudam a moldar o caráter daqueles que os consomem e criam referências estéticas, que, até hoje, ecoam e inspiram novas histórias e batalhas.