Conheça a trajetória da rainha do sample Deborah Mannis. Samplear é mais que uma técnica de produção musical, é uma arte e uma das essências da cultura Hip-Hop que iniciou e propagou a música Rap com trechos de músicas Funk e Soul Music, e que depois de muitos anos ganhou uma diversidade de ritmos e estilos musicais sampleados em suas composições.
O começo de tudo
Um dos maiores pesadelos dos produtores eram os processos jurídicos que poderiam ocorrer por uso indevido de trechos de determinada música ou acusações de plágio, isso só se tornou mais propício quando a música Rap ganhou o mainstream do cenário norte americano e mundial, fazendo com que uma nova profissão surgisse, a Sample Clean ou Limpador de Sample traduzindo literalmente.
É nesse momento que tem início a trajetória da Rainha do Sample, uma mulher que usou de inteligência e perspicácia para adentrar em um mundo machista como o do Rap, no inicio dos anos de 1990.
Você já deve ter escutado os maiores clássicos da Golden Era cantados por Mobb Deep, Nas, Dr. Dree, Wu Tang Clan ou até mesmo, os mais recentes como Kendrick Lammar, The Black Eyed Peas, Drake, mas é pouco provável que tenha ouvido falar de Deborah Mannis-Gardner, a maior responsável por não deixar que essas músicas ficassem engavetadas ou que sofressem alterações em suas composições, ou melhor dizendo, a responsável indireta pelas músicas estarem nas ruas e virarem clássicos até os dias atuais.
Deborah Mannis-Gardner começou sua carreira na indústria do entretenimento trabalhando em videoclipes e fornecendo autorizações para a televisão por volta de 1989, foi na mesma época que conheceu a cultura hip hop por intermédio de alguns amigos na Inglaterra.
Um dia ela abordou seu supervisor na Diamond Time, e perguntou se poderia trabalhar também com negociação e liberação de direitos autorais sobre obras de música Rap, segundo ela ”Quando comecei, me disseram que sample era um roubo, disseram-me que o Hip-Hop e o Rap eram uma fase, que não durariam”.
Curiosamente foi lá que ela conheceu o então Puffy Diddy trabalhando como estagiário e presenciou a saída dele da empresa em questão para abrir sua própria gravadora que mudaria o cenário da música nos EUA, a Bad Boy Records. Assim como ele, ela também tinha o desejo de abrir o próprio negócio e em 1996 oficialmente inaugurou a DMG Clearances.
A empresa tem o objetivo de ‘limpar’ samples utilizados na música em geral mas se especializou na música Rap, também trabalha com autorização de uso de músicas em filmes, séries e games. Gardner conta que teve dificuldade no início de carreira mas diz com muito orgulho como estruturou sua empresa:
Hoje, minha empresa é toda feminina. E não são mulheres formadas em música, são mulheres fortes e orientadas para a carreira. Fiz minha empresa para mulheres, para que minha equipe possa ter filhos e consigam ter horários flexíveis para trabalhar
declarou a OkayPlayer.
Ela conta que ao invés de criar um novo movimento, preferiu contribuir para os que já existem e revela em entrevista para a Medium ”Eu quebrei a barreira para as mulheres fazerem o que eu faço e serem reconhecidas e recompensadas em um negócio que era apenas para homens. Isso pode e deve se espalhar para outras profissões. Meu gênero não define o que posso e não posso fazer e nunca deveria.
Claro, as mulheres ainda têm uma longa jornada pela frente, pois o teto de vidro se transformou em concreto, mas, enquanto encorajarmos e defendermos as mulheres ao nosso redor, teremos uma chance de lutar para mudar a dicotomia.”
Ela começou a editar música juntos para a mídia antes de conseguir shows na agora extinta firma de liquidação Diamond Time (que trabalhava em canções de karaokê) e na RCA Records, onde liberou samples para Wu-Tang Clan, Mobb Deep entre outros grupos, ”Trabalhei com Redman em seu primeiro álbum, trabalhei com EMPD e Das EFX.” declarou para o portal synchtank.
No início de sua carreira a organização de direitos autorais BMI permitia apenas três perguntas por atendimento, Gardner fazia diversas ligações mudando o tom de voz e fingindo ser outra pessoa, e foi dessa maneira que conseguiu muito de seu conhecimento no ramo.
Gardner valoriza a arte do sample, segundo ela ”ser sampleado” é uma forma de ser lembrado e conhecido por outras pessoas e gerações atuais ”Syl Johnson é um exemplo perfeito. Mesmo se você olhar para James Brown, as amostras realmente trouxeram sua carreira de volta. Sim, ele sempre foi um ícone, mas havia pessoas que não conheciam sua música. Ou Isaac Hayes ou The O’Jays. Conseguimos trazer esses direitos autorais de volta à vida e fazê-los ganhar receita novamente.” declarou a Billboard.
Em termos de filmes, fui o supervisora musical do premiado documentário The Defiant Ones que conta a história da carreira dos produtores Doctor Dree e Jimmy Iovine, a série disponível na Netflix foi vencedora do Emmy.Sobre a trilha sonora do documentário, ela revelou que há uma única música que não conseguiu autorização para uso por conta da dificuldade de encontrar o verdadeiro autor da obra, ”Na DMG, não tentamos obter o melhor negócio, tentamos obter o mais justo.” diz ela sobre os valores acordados entre a gravadora detentora do sample e o artista que usou.
Gardner conta que no começo as grandes gravadoras tinham medo de trabalhar com Hip-Hop por conta dos problemas de direitos autorais sobre uso dos samples que poderiam ocorrer, isso foi um dos impulsos que a fez perceber a importância de ter profissionais nessa área.
Ela também destaca que o preconceito pelo uso do sample nas músicas parte também de uma questão racial, pois bandas de rock nos 80 e 90 raramente tinham problemas tanto por direitos autorais em acordes semelhantes a outra banda, quanto ao uso de palavras, para a OkayPlayer ela comentou.
“Naquela época, as premiações costumavam ter tanto medo de ter artistas de Rap no palco. O Guns N ‘Roses costumava usar palavrões, mas estava tudo bem para eles estarem no palco. Ainda acho que é um mundo muito racista – e definitivamente há padrões duplos nesta indústria.” e completa:
Se você ouve música country ou rock alternativo e muitas coisas soam ‘semelhantes’, mas quando se trata de Hip-Hop e Rap soando semelhantes, imediatamente há uma ação judicial sendo tomada. Diga-me que isso não é um perfil racial? Eu sei que sou branca, mas isso não significa que não possa ver o que está acontecendo. Samplear é um talento. É uma habilidade.
Atualmente ela é sócia da empresa Tracklib, um site que disponibiliza samples com valores de autorização mais acessíveis financeiramente, uma espécie de loja de samples que conta até mesmo com música brasileira em seu catálogo.
Um pouco de história!
Apesar da complexidade das leis sobre direitos autorias, Gardner incentiva artistas utilizaram a técnica de samplear e para nunca deixar que nada atrapalhe a criatividade do artista.
Ela conta que alguns trabalhos musicais não conseguem ter êxito na hora da negociação de direitos, um desses trabalhos foi a música de Ol ‘Dirty Bastard com Macy Gray cantando”Don’t Go Breaking My Heart”, que ela conseguiu negociar mas que não foi lançado oficialmente por conta da morte precoce de ODB, entretando, anos depois a música vazou na internet e revela que é uma de suas músicas favoritas.
Depois de trabalhar com Lil Wayne, Boy Wonder, Everlast, J. Cole, Snoop Dogg, Tyler, The Creator, Black Thought, Brockhampton, Quest Love, Das Exf, Eminem, Mary J. Blidge e uma infinidade de artista, ela revelou o disco que mais gostou de trabalhar, foi o premiado To Pimp a Butterfly de Kendrick Lamar’s, Gardner revela que o disco tem uma versão mais ”completa” com uso de músicas feitas com samples não autorizados.
Gardner deixa sempre registrado 5 lições de liderança que aprendeu no meio da música: ser teimosa no sentido de insistência em seus objetivos, integridade para saber cobrar o preço justo, ter coragem, trabalhar e valorizar equipe e jamais fechar portas.
Curitu? Aqui tem outra lição importante, dê uma conferida: É crucial que o rap fale de amor.