A música Rap potencializada pela influência de gêneros musicais diversos e sua relação com o Disco
A história de evolução da música Rap está diretamente ligada com o surgimento e a influência de gêneros musicais diversos através dos anos, que potencializaram as produções do gênero e a aceitação e reconhecimento da música Rap pelo público e a própria indústria musical como um todo.
Já vimos por aqui como o Rap, no Brasil e no mundo, está ligado a gêneros como o Funk e o Soul que tiveram por aqui um papel essencial de estabelecimento da cultura Hip-Hop no Brasil pelos bailes blacks. Entendemos também a entrada do Rap nas igrejas e a ligação da música Gospel com a essência dos valores identitários e da própria musicalidade do gênero.
As ligações entre a cultura Hip-Hop com a cultura Rastafari e o impacto dessa relação com a música Rap e o Reggae também já foram pauta por aqui, destacando o papel dessa conexão com as raízes da cultura e os valores defendidos pelo Hip-Hop nesses 50 anos. Além disso, entendemos também a relação de familiaridade entre a música Rap e o Jazz, que se influenciaram fortemente e seguem evoluindo de forma conjunta em suas produções até os dias de hoje.
Agora, vamos falar de um recorte importante não só para a música Rap, mas para o estabelecimento e fortalecimento de valores de toda a cultura Hip-Hop no que diz respeito a música, comportamento, moda, resistência social e cultural e a própria valorização do ato de festejar, em um aprofundamento em um gênero musical que até hoje é base para artistas da música Rap em todo o mundo e desaguou em relações do gênero com vertentes diversas da música, chegando até a cena eletrônica.
Relembrando os tempos das discotecas, vamos colocar nossos macacões brilhantes e echarpes, sentir a fumaça de gelo seco e as bolhas de sabão descendo do teto para falar sobre a importância da música Disco para o Rap e como essa relação trouxe potência e identidade para a cultura Hip-Hop no Brasil e no mundo.
Disco e Hip-Hop: culturas de resistência
A cultura musical do século XX tem na música Disco um dos seus maiores expoentes, gerando influências que reverberam nas produções de artistas até os dias de hoje e que também estabeleceram a cultura dos espaços pensados para se viver a experiência máxima da música, combinando som e dança, como os clubes e raves que tanto se proliferaram na indústria mundial, mas que nasceram das antigas discotecas.
Partindo da história contínua da Dance Music Eletrônica, a música Disco e a cultura das discotecas teve seu surgimento com influências bem diferentes na América do Norte e na Europa no final dos anos 60 e começo dos 70.
Enquanto a vida noturna de Paris e Berlim trouxe para as discotecas uma música Disco com sons que trabalhavam fortemente a estética e sonoridade eletrônica de grupos como Tangerine Dream e Kraftwerk, nos Estados Unidos, as referências de Funk, Soul, Blues e R&B foram determinantes para a identidade da música Disco, onde o gênero também estabeleceu laços fortes com a comunidade LGBTQIA+.
Mais do que um gênero musical, em seu auge nos anos 70, o Disco se popularizou como uma verdadeira cultura de festa, identidade e manifestação artística e social que tomou o mainstream e a indústria musical na forma de se reconhecer e explorar a vida noturna. Firmando raízes nas comunidades afro-americanas e latinas de Nova York e Filadélfia, as discotecas se tornaram locais de culto à música e liberdade em meio a luzes brilhantes e trajes extravagantes.
Além de serem espaços de celebração da música e dança, as discotecas foram vitais para a comunidade LGBTQIA+, que demanda espaços livres de violência, julgamento e assédio, para se divertirem, expressarem e viverem a liberdade da vida noturna sem medo e ameaça à sua existência.
Esse valor das discotecas reverberou mundialmente para os modelos de casas de festa, sendo pensados como espaços que valorizam (ou deveriam valorizar) não só a música, mas a vivência do público que frequenta esses espaços e ali se sentem livres para expressar suas identidades particulares.
No Brasil, por exemplo, a chegada do Disco acontece em 1976, com a inauguração da primeira discoteca, a New York City Discotheque em Ipanema (RJ), em um cenário de cultura e entretenimento que buscava suas brechas para resistir em meio à Ditadura Militar que aterrorizava o país. Nessa realidade, a cultura Disco inicia uma nova forma de celebrar e experimentar a vida noturna no Brasil, em ambientes que combinavam a música com a busca pela democracia pelo simples direito de festejar.
Nesse momento, as ligações entre a cultura Disco e a cultura Hip-Hop já mostram as suas raízes próximas, uma vez que a dança como resistência foi também o gatilho principal para a proliferação do Hip-Hop no Brasil através dos bailes blacks nascidos após o auge da Disco. Nos espaços de festa do Disco e do Rap, a dança surge como uma manifestação não apenas artística, mas um escapismo da realidade discriminatória da época, mirando corpos negros e diversos, em um movimento de resgate à identidade e aos direitos de celebrar a existência das suas comunidades.
Não só na dança, mas também na moda, a música Disco e a cultura Hip-Hop trazem também a vestimenta como um destaque de identidade e expressão das culturas e da música. Enquanto a Disco era marcada por roupas brilhantes, colares de ouro, calças boca de sino e sapatos plataforma, as pistas das festas de Rap também encontravam a moda como um ponto de observação, trazendo a moda do Hip-Hop (considerada por muitos como um dos elementos fortes da cultura) para o centro da pista como uma forma de manifestação dos valores da cultura e da música Rap como um todo, em um movimento que promoveu o surgimento de marcas periféricas em uma busca por elevar também a potência da periferia em ditar o que é moda nos seus espaços frente a uma indústria cultural elitista e excludente.
Reconhecidas como culturas de resistência, o Disco e o Hip-Hop denunciaram e celebraram a alegria da cultura nacional em seus espaços de ocupação, destacando a experimentação comportamental da contracultura da época, em uma luta por recuperar a noite e a cidade, celebrar a importância dos encontros, de festejar e questionar as estruturas. No Brasil e no mundo, as discotecas foram responsáveis por democratizar a noite e dar acesso a uma nova parcela da sociedade marginalizada. Com a música Disco, surge um novo mercado, onde a periferia também queria dançar nos grandes clubes, com a melhor luz, o melhor som e os melhores DJs.
“D-I-S-C-O, ela é as 10 mais da Billboard”
Espaços como o Studio 54 em Nova York, a New York City Discotheque no Rio de Janeiro, a Hippopotamus em São Paulo, Papagaio Disco Club e tantas outras, ficaram marcados pela explosão de hits de artistas como Donna Summer, Rita Lee, Bee Gees, Tim Maia, KC and the Sunshine Band, Gloria Gaynor, Frenéticas e The Village People se tornarem ícones do Disco e popularizar a cultura das discotecas mundialmente.
Para além da valorização desses espaços como a manifestação de comunidades marginalizadas, as discotecas foram também exemplos de qualidade de sistemas de som onde o protagonismo artístico encontrou nos DJs os seus grandes destaques, em mais uma conexão com valores essenciais para a cultura Hip-Hop, dando brilho a um dos seus principais elementos.
Se no Brasil o Hip-Hop chegou pela dança, nos Estados Unidos ficou na responsa dos DJs carregar e proliferar essa cultura através das festas de bairro, popularizadas por nomes como DJ Kool Herc, Afrika Bambaataa e Grandmaster Flash. Mas colocar o DJ como protagonista não era o costume dos gêneros e festas que ocupavam o mainstream musical e cultural da época, até a chegada do Disco.
Assim como o Rap, a música Disco inicialmente era considerada uma música superficial frente ao o que a indústria chancelou como “música de qualidade”, porém a relevância cultural, artística e social de ambos os movimentos, marginalizados e rotulados como pobres durante anos foi impossível de ignorar. Assim, ficou na responsabilidade desses movimentos trazer as suas próprias referências e formas de se fazer arte com influências que reverberam até hoje.
As discotecas iniciaram o movimento de dar protagonismo aos DJs das festas e à interação desses artistas com o público. Através de nomes como o DJ Ricardo Lamounier, o Brasil viu pela primeira vez técnicas de mixagem alinhando a batida de uma música à outra, bem como a introdução do mixer na função dos antes chamados discotecários, com a chegada das primeiras grandes tecnologias (mixer e pick-ups Technics) para os DJs nacionais, além de serem espaços que promoveram o networking entre os DJs, iniciando a caminhada de grandes nomes na função de disc-jóquei.
Ainda destacando o papel dos DJs nacionais durante a era Disco, Ricardo Lamounier foi o responsável por lançar o primeiro disco mixado do Brasil (New York City Disco), assim como apresentar a primeira amostra de técnicas como phasing e back-to-back. A Disco motivou também um movimento de pesquisa do DJ, cada um queria ter os discos e músicas exclusivas, fortalecendo o movimento do garimpo dos DJs atrás das suas pérolas exclusivas que arrastavam públicos para as discotecas em busca daquela música que só um DJ tinha.
Para além das discotecas, a presença da música Disco e dos seus DJs nas rádios fortaleceram a formação de novos DJs, bem como a proliferação de conhecimento entre a classe, veiculando informações sobre técnicas e equipamentos para os DJs da Black Music, Dance e Rap que viriam na sequência.
Os DJs se tornaram a força principal por trás da ascensão das discotecas e da onda Disco, potencializando uma gama de estilos dançantes, como o Rap, Electro, Hi-NRG, Italo-disco, House, Techno e Drum’n’Bass. A figura do DJ se popularizou entre a sociedade branca brasileira, graças à explosão mundial da Disco e das discotecas, sendo também a porta de entrada da Black Music nas festas da classe média branca, para além das periferias e subúrbios e consequentemente da música Rap, que tem na cultura Hip-Hop o DJ valorizado como um dos seus principais elementos. Com a Disco o DJ se consagrou como a alma da festa.
Aqui, vale reservarmos um espaço para destacarmos grandes nomes nacionais que fizeram a sua marca na música Disco e abriram espaço para uma nova escola de DJs nacionais, como: DJ Ademir Lemos, DJ Même, DJ Cláudio “Careca” Freitas, DJ Rommel Marques, DJ Corello, DJ Amandio da Hora, DJ Lula, DJ Big Boy, DJ Ronnie Soares, Monsieur Limá, Dom Pepe, Iraí Campos, DJ Marky e tantos outros.
Além de destacar um dos principais elementos da cultura Hip-Hop como seu protagonista, a cultura Disco reverberou sonoramente em grandes clássicos da música Rap no Brasil e no mundo, servindo de referências instrumentais e vocais para samples dos anos 80 até os dias de hoje, encabeçando projetos do underground ao mainstream da música Rap, criando obras inesquecíveis que homenageiam o gênero e reforçam a sua importância como biblioteca sonora para toda uma geração de rappers, assim como para toda uma sociedade marginalizada em busca de um espaço livre para festejar..
A morte do Disco como um Big-Bang cultural
Sendo uma cultura que em sua música e suas festas buscava emancipar as vozes de comunidades negras e LGBTQIA+ marginalizadas e violentadas durante toda a história da indústria musical, não é de se espantar que a cultura recebesse críticas diretas e tivesse sua existência questionadas por gigantes da indústria.
Apesar da popularidade inquestionável durante o seu auge, a música Disco teve o seu fim orquestrado de forma teatral. Em 1979, um radialista frustrado e influente que havia perdido o seu emprego na rádio para os programas de Disco Music, promoveu nos Estados Unidos a Disco Demolition Night, conclamando fãs de Rock e outros gêneros musicais que se viam ameaçados e agredidos pela cultura Disco, a levarem milhares de vinis de Disco para serem destruídos em um estádio de beisebol. Após esse vergonhoso evento, a popularidade da música Disco despencou e o seu espaço na indústria foi rapidamente perdido.
Mas como um big-bang, a explosão da morte da cultura Disco despertou vida em outros gêneros e espaços onde a música underground buscava formas de se expressar com identidade, se tornando uma das principais referências para a música Rap, Dance, House, Pop e tantas outras sonoridades diversas até os dias de hoje.
Como já contamos em outro texto por aqui, esse evento possibilitou a efervescência, por exemplo da música House, que viveu no início dos anos 80 um surgimento forte de DJs influenciados por diferentes estéticas e sonoridades, combinando com referências da música Disco e expandindo as possibilidades da música eletrônica pelos próximos 40 anos, levando, inclusive, para uma aproximação inusitada do gênero com a música Rap.
“Você tá com camisa do Racionais e tá indo pra onde? Pra rave!? Não, não, não!”
Falar da relação da música eletrônica com o Rap é sempre uma polêmica e podemos compreender muito bem os motivos, em especial pelo processo de gentrificação que foi colocado sobre a música eletrônica ao longo dos anos, afastando diversos gêneros musicais eletrônicos das suas raízes negras, periféricas e marginalizadas, em troca de um público burguês que insiste em não enxergar as apropriações culturais das festas e gêneros musicais em destaque na cena eletrônica.
Essa discussão gerou um momento memorável para a cultura nacional, com uma participação do Mano Brown em uma debate sobre lugar de fala e apropriação cultural, onde o artista é questionado sobre a presença de camisas do Racionais em espaços como as raves e festas de música eletrônica. Pensando nesse viés burguês do público e das produções dessas festas, é realmente de se indignar a imagem de qualquer ligação do Rap com esses espaços. Mas e se compreendermos a história desses gêneros e desses espaços, em suas influências interligadas, como espaço de homenagem às raízes musicais e culturais de gêneros diversos como foram as discotecas na Disco Music?
Como dito antes, a música e a cultura Disco, principalmente em suas ligações diretas com a cultura Hip-Hop e o Rap, deram origem e potencializaram grandes vertentes sonoras e formas de se festejar que moldaram a cultura e mostram os seus impactos até hoje. Com a morte do Disco, gêneros como o House assumiram uma demanda do público pela necessidade de manter espaços para a periferia dançar e tomaram as referências sonoras do Disco para si próprios, fortalecendo as produções dos artistas da época e criando obras memoráveis que lotam as pistas até hoje, assim como fizeram os Bailes Blacks e futuramente os bailes de Rap, criando espaços para acolher o desejo de festejar.
Desse desejo de festejar e se expressar artisticamente, surgiu também a cultura Ballroom, que tem o House como mãe, e a cultura Hip-Hop como um possível primo, se compreendermos que a dinâmica das festas também faz a sua representação dos elementos DJ, MC e Break, combinando música, voz e dança em suas apresentações, como por exemplo na dança vogue, que tem seus movimentos e dinâmica uma influência direta do breaking, e que foi trazida pela primeira vez ao mainstream no clipe da música “Friends”, de Jody Watley com feat de Eric B. & Rakim, antes mesmo da “Vogue” de Madonna.
Para além disso, impossível ignorar a origem histórica dos públicos da cultura Ballroom, do House e do Rap, que enfrentaram as mesmas violências e precariedades do final dos anos 80 nos Estados Unidos como a epidemia de crack e AIDS.
A morte da música Disco deu vida nova para as músicas House e Rap, e potencializou a relação de proximidade entre a cena eletrônica e a cultura Hip-Hop que já existiam. Desde Afrika Bambaataa e Soulsonic Force em “Planet Rock”, até as músicas electro como os primeiros materiais para DJs lançarem nas pistas de dança de break, vimos ao longo dos anos o surgimento de novos gêneros musicais dentro da música House que se debruçaram sobre o Rap para expandir suas referências, como o Hip-House, com DJs de House incorporando scratching e vocais de Rap em suas mixagens e performances.
Assim, chegamos até o cenário contemporâneo da música Rap, repleta de influências do House em nomes de artistas como Ashira, LARINHX, Tarcis, FBC, Ebony, YOUN, VANDAL, niLL, Flora Matos, Rico Dalasam, Iuri Rio Branco e tantos outros.
Rap em evolução
Eu decidi aqui falar sobre a proximidade da música eletrônica, em específico o House, com a música Rap, também para lembrar sobre as raízes dos gêneros e das culturas, as suas essências e identidades que devem ser reconhecidas e valorizadas em toda a trajetória evolutiva da música.
Rap e House são gêneros fortalecidos, e de certa forma, criados pela música Disco, suas origens se entrelaçam, suas músicas se conversam e se complementam de formas diversas e isso não precisa ser ignorado, ainda que seja essencial compreender e cobrar a lembrança de que a música eletrônica, inclusive no Brasil, possui uma origem popular, negra e com fortes bases fora do eixo Rio-São Paulo.
Ao longo da sua trajetória, o Rap absorveu técnicas, valores, estéticas, conhecimentos, acertos e erros de gêneros musicais diversos como citamos por aqui neste texto. São apenas 50 anos de cultura, que foram responsáveis por ensinar a diversas gerações aulas de vida, música, cultura, expressão, discurso e comportamento.
É importante que o Rap evolua, que o Rap busque fonte e parceria em outros gêneros e influências. Mas é essencial lembrar as nossas raízes, de onde vieram as nossas referências e pelo o que devemos seguir lutando, por mais 50 anos de Hip-Hop!
Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre a troca criativa entre o Rap e o Jazz, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!