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Apocalipse 16

Rap gospel e a inserção do Hip-Hop dentro das igrejas

Como se deu o surgimento e a popularização do Rap Gospel e a aproximação entre a cultura Hip-Hop e as igrejas, no Brasil e no mundo.

A gênese da música Rap

Quando você entra no YouTube e digita “the first rap”, os 6 primeiros resultados não são de “Rappers Delight”, do The Sugarhill Gang, mas sim “Noah”, do The Jubalaires. Esse quarteto gospel ganhou destaque entre os anos 1940 e 1950 pela potência dos seus vocais e a estética musical vanguardista, que unia os spirituals afro-americanos com o Gospel tradicional.

The Jubalaires

Por isso, também, Orville Brooks, Ted Brooks, Caleb Ginyard, George McFadden e, mais tarde, Willie Johnson foram os primeiros artistas cristãos a se apresentarem em programas de TV, incluindo o icônico “The Ed Sullivan Show” and “The Arthur Godfrey Show. Foi uma dessas performances que levantaram a questão do The Jubalaires ser ou não os pioneiros do Rap.

De fato, muitas músicas do grupo, incluindo “The Preacher and the Bear”, possuem a cadência que se aproxima do Rap. Porém, ainda não era Rap, tendo em vista que outros gêneros musicais negros possuíam essas mesmas características. Isso também vale para o scat, do Jazz, que alguns consideram ser as primeiras formas de beatbox.

Diferente do que se especula, essas são formas de expressão que serviram de referência para o desenvolvimento da música Rap. Nessa árvore genealógica também estão os sistemas de som jamaicanos, Blues, Jazz, Funk, Soul, Disco e, inevitavelmente, Gospel. O último pode até parecer desconexo dos demais, mas direta ou indiretamente faz parte dessa gênese.

As experiências vividas dentro das igrejas negras estadunidenses também serviram de referência para MCs, DJs e B Boys, levando em consideração que grande parte da comunidade negra é cristã. Por isso, muitos rappers usaram (e ainda usam) temáticas bíblicas e a fé em seus raps, de MC Hammer, passando por Tupac, DMX, Nas, T. I., Chance The Rapper, Kanye West, Kendrick Lamar, Racionais MC’s e Rappin’ Hood.

Isso não quer dizer que toda essa vivência foi incorporada aos elementos do Hip-Hop porque a religião fazia questão em distanciar o santo do profano. Talvez o islã tenha se aproximado mais do Hip-Hop do que o cristianismo nos seus anos de desenvolvimento e ascensão, em especial por causa dos Five Percents.

Uma alternativa sagrada

A cultura criada por negros e latinos nos guetos de Nova York não foi aceita imediatamente pela igreja – a maioria delas não aceitam até hoje. Não entenderam que, assim como Jesus, ela poderia salvar vidas. Pelo contrário, quando as letras começaram a seguir por uma linha – frequentemente vista como – violenta, misógina e pró-uso de drogas, as repreensões e os protestos se intensificaram nos púlpitos. Não que tenha surtido tanto efeito. Porém, com a conversão de jovens ao cristianismo, alguns por influência do Jesus Movement, somados aos que já estavam na igreja, uma alternativa sagrada foi desenvolvida para suprir uma demanda crescente. Assim, criaram o Christian Rap, também chamado de Holy Hip Hop (HHH) ou Christian Hip Hop (CHH).

As primeiras movimentações começaram com o Pete McSweet, do Queens, Nova York, lançando em 1982 o álbum “The Gospel Beat: Jesus-Christ”, gravado pela Lection Records (Polygram). Três anos depois, Stephen Wiley abriu de vez o espaço para os MCs evangélicos com “Bible Break”, em 1985, considerado oficialmente o álbum inaugural do Rap Gospel, alcançando a #14 posição nas rádios cristãs, em 1986, com a faixa-título. Depois de furar a bolha, inclusive dentro do mercado cristão – o Christian Contemporary Music (CCM, que é equivalente ao gospel no Brasil), McSweet e Wiley influenciaram Michael Peace, que estreou em 1987 com “Rrrock It Right” e P.I.D. (Preachers in Disguise) em 1988.

A entrada de vez no jogo aconteceu nos anos de 1990 com o Gospel Gangstaz, falando sobre a violência das gangues e a salvação de Jesus Cristo carregado de G-Funk, DC Talk, fundindo Rap com Rock, e o The Cross Movement criando uma das bancas mais influentes do Rap Gospel, colocando no cenário T-Bone, The Ambassador, The Tonic, Phanatik,, T.R.U.-L.I.F.E, Cruz Cordero, Enock e Earthquake.

Um dos que mais contribuíram para a estruturação do Rap cristão estadunidense foi o DJ Official (Nelson J. Chu), falecido em 2016. Ele também participou do Cross Movement e ajudou a formar o coletivo que iria expandir o alcance da mensagem para além da comunidade evangélica, chegando a bater de frente com o “rap secular”: o 116 Clique. Baseado em Atlanta, o 116 criou o selo Reach Records. Assim, o time encabeçado por Lecrae (o maior representante do HHH contemporâneo) chegou no topo das paradas da Billboard e conquistou diversos Grammys.

Cross Movement

Primeiros passos do Rap Gospel BR

Seguindo um movimento parecido com o que aconteceu nos EUA, o Rap no BR foi levado para dentro das igrejas por pessoas que já estavam envolvidas antes de terem o “encontro com Deus”. Porém, diferente de lá, aqui demorou para engajar. O preconceito impediu que expressões culturais – consideradas – mundanas, e ligadas à cultura negra, passassem das portas para dentro. Mas isso foi inevitável.

Aos poucos, tanto o Rap quanto o Rock foram inseridos na realidade evangélica. O segundo mais que o primeiro, que além de entrar na classificação de “pauleira” (que tinha a cadência mais pesada, principalmente evidenciando a bateria – um instrumento pouco aceito nos templos) era também considerado música de bandido.

Os primeiros sinais de mudança apareceram no radar no final dos anos 1980 e início dos 90 com Estevam Hernandes (autodenominado apóstolo) dando início a um plano de marketing que iria transformar a cafona, ultrapassada e discriminada música evangélica no moderno e descolado Gospel (que nada tinha a ver com o Gospel norte-americano) – neste período os crentes sofriam um certo preconceito da sociedade brasileira, que tinha o prazer de ser o maior país católico do mundo.

Para tirar suas ideias do papel, Hernandes chamou o publicitário Antonio Abud. O primeiro passo foi arrendar horários na então rádio Manchete – logo depois transformada em Manchete Gospel e atualmente Gospel FM -, criar a gravadora Gospel Records, programas de TV, produzirem uma série de grandes festivais, dos quais estão S.O.S da Vida e Marcha Pra Jesus. Para fomentar tudo isso,  formaram bandas de Rock, MPB e Black Music.

Nesse contexto, surgiu a Banda Kadoshi, uma das precursoras da Black Music Gospel BR, e responsável por introduzir o Rap no Gospel com “Ser Ou Não Ser”, do álbum “Em Ritmo de Louvor e Adoração”, de 1994. Para fazer as rimas, Silas Furtado e Gerson Isidoro convidaram um DJ recém-convertido que já tinha experiência por fazer parte das equipes Zimbabwe e Black Mad: DJ Alpiste (pai do trapper The Boy, da Recayd Mob).

Banda Kadoshi

Esse é considerado o primeiro Rap Gospel gravado no Brasil, apesar do próprio Alpiste ter feito uma participação em “Razão Para Viver”, do álbum Compromisso, em 1993. Mesmo desbloqueando essa fase, o gênero não evoluiu tão rápido quanto os demais.

Pioneirismo e influência no Rap nacional

A ajuda da Renascer em Cristo, dos Hernandes, foi primordial (direta e indiretamente) para o desenvolvimento de outros grupos. Ainda em 1994 surgiu o Juízo Final. Diferente do DJ Alpiste, que tinha letras mais bíblicas, o grupo que depois faria a fusão do Rap com o Rock falava da salvação com a mesma linguagem do “Rap clássico”, tratando de crimes, drogas e apresentando Jesus como a saída.

Por outro lado, o Alpiste tornou-se a referência e o mais bem sucedido nos anos iniciais, vendendo milhares de CDs, e até vencendo o Prêmio Hutúz, o mais importante prêmio do Hip-Hop BR até os anos 2000. Ele foi o pioneiro na gravação de Rap com temática cristã, e também o primeiro a registrar um disco/DVD de Rap acústico, mesmo antes do Marcelo D2 fazer o Acústico MTV.

DJ Alpiste

O álbum do Alpiste foi gravado em 15 de maio de 2004 no auditório Copan, da Renascer em Cristo, e o D2 fez o dele um mês depois. Porém, as burocracias da Gospel Records fizeram o lançamento atrasar. Por isso, o do Marcelo D2 chegou ao mercado antes. Outro ponto importante é que a produção foi assinada por Dudu Borges, que também tocou os pianos Rhodes e Hammond, hoje um dos grandes produtores e hitmakers da música brasileira (principalmente no sertanejo).

Um pouco depois de Alpiste e Juízo Final abrirem as portas da cultura periférica para a igreja, Pregador Luo também entrou trazendo uma linguagem ainda mais carregada com as vivências das ruas. O objetivo deles não era cantar para os “crentes” e sim evangelizar os que não conheciam o evangelho de Cristo. Então, para atingir o alvo, tinham que falar a mesma língua de quem estava do lado de fora. Já envolvido com o Hip-Hop, Luo criou em 1996 o Apocalipse 16 com Charles MC e DJ Betico, e dois anos depois lançou em vinil o álbum que se tornaria um clássico do rap BR: “Arrependa-se”.

Nesse projeto, o APC16 teve a participação de Edi Rock, Thaíde e Doctor Billy. No mesmo ano, Luo recebeu o convite para abrir a performance icônica dos Racionais MCs no VMB, da MTV, fazendo o papel de um pastor que faz um sermão antes da execução de “Capítulo 4, Versículo 3″. Com “Muita Treta”, do álbum “2ª Vinda, A Cura”, de 2000, o Apocalipse 16 ganhou ainda mais projeção fora do círculo religioso, sendo premiado no ano seguinte com o Hutúz. A partir de 2006, Luo partiu para a carreira solo, assinando contrato com a Universal Christian Music em 2015. Envolvido com artes marciais, sua música foi usada como tema para entrada de lutadores de MMA em diversas partes do mundo. 

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Pregador Lou

Ainda com a ideia de levar jovens periféricos que curtiam Rap para a igreja, o Ao Cubo também se destacou no cenário nacional. Lembro de um show em Campinas, na metade dos 2000’s, que arrastou uma multidão para dentro de uma igreja pequena num bairro próximo há algumas favelas. A maioria dos presentes não frequentavam o lugar. Naquele momento, o grupo estava no auge com “Naquela Sala”, “1980” e “Mil Desculpas” tocando na 105 FM e nos auto-falantes dos carros nas ruas. É interessante que no início o Ao Cubo não se colocava dentro da categoria Gospel, mas quando entraram de vez na indústria da música, ela fez questão de rotulá-los.

Fora de SP

Diferente da realidade de São Paulo, no Rio de Janeiro o Rap seguia uma linha diferente, mais festiva. Formado em 1994, o R.E.P (a sigla de Radicalizando, Evangelizando e Politizando, um nome sugerido por MV Bill ao L-Ton e DJ W para abrasileirar o nome do grupo) caiu nas graças de DJs, rádios e da crítica especializada com o álbum “Proceder”. O single “Mão Pra Cima” virou febre nas principais casas de show do Rio e a dupla foi indicada ao Hutúz.

Na cidade maravilhosa também nasceu um dos grupos mais visionários do Rap Gospel nacional dos anos 2010. Batizado de Crente Crew, ele reunia uma rapaziada crente envolvida com os elementos do Hip-Hop, principalmente o pixo e o graffiti, mas também o skate. Mesmo lançando apenas um disco e existindo por pouco tempo, fizeram história pela forma descontraída de fazer Rap.

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Crente Crew

Eles não queriam se encaixar no rótulo Gospel. Não queriam ficar só na igreja, porque era “pra tocar onde tão perdendo a vida com cachaça e cerveja”. Encontrei com eles uma vez no show de lançamento do álbum “Próximo Nível” do L-Ton, mas não tive a oportunidade de vê-los ao vivo. A ascensão meteórica rendeu o segundo lugar no RPB Festival (Rap Popular Brasileiro, promovido pela CUFA-RJ, e destaque na maior publicação de rap cristão do mundo, o Rapzilla.

Ainda do RJ, a DJ Thammy começou no gospel, tocando nas baladas Gospel Night e Crewolada, mas conseguiu não ficar presa somente nesse cenário. Tornou-se uma das DJs mais requisitadas do Brasil. O mesmo aconteceu com a Yas Werneck, emplacando a música “Coméki” na Mixtape NRJ Volume 1, que a Nike e Neymar Jr criaram com a curadoria dos produtores Ernest Desumbila, Flavio Rodríguez e Ba $$ ilones. O som também virou tema central da série do jogador na Netflix. Fora do eixo SP-RJ, o Rap Gospel criou raízes fortes em Brasília com o X-Barão, Florianópolis e Curitiba com Abel, Banca de Rap Cristão, Cacau Siqueira, Rato Reverso, Efikaz.

Após a era de crescimento, a cena esfriou. A falta de apoio das igrejas, a pirataria e a extinção dos CDs foram alguns dos motivos que fizeram o Rap Gospel perder força dentro e fora da comunidade cristã. Com a transição para o digital, a grande maioria dos artistas evangélicos ficaram no tempo por não conseguirem acompanhar a evolução da indústria.

Alguns desistiram porque não tinha mais espaço, como aconteceu com o X-Barão – que numa entrevista que concedeu a mim em 2013 disse que chegou a passar fome porque não tinha rendimentos nem shows ou ajuda da sua igreja, a Renascer -, outros se afastaram por um tempo e  teve quem caiu no esquecimento – inclusive o Alpiste.

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X-Barão

Cenário atual

Após um período de baixa, de mais de 10 anos, o Rap Gospel voltou a ganhar relevância dentro do mercado. Não que nesse período tenha sido extinto. Fex Bandollero, Cacau, L-TON, Biork, Kivitz, Thiagão, Lito Atalaia e Pregador Luo se mantiveram na ativa. Porém, com menos evidência que nos anos 2000. Isso tem começado a mudar com o Trap ganhando força dentro Gospel. E da mesma forma que lá no começo o Rap teve resistência, o Trap também está enfrentando dificuldades para se afirmar dentro das comunidades religiosas. A desculpa novamente é que estão tentando levar algo que é mundano para dentro das igrejas.

Mesmo assim, tem acontecido um movimento interessante com trappers cristãos se destacando nas playlists de Rap e contabilizando números relevantes que ultrapassam 600 mil ouvintes mensais somente no Spotify. 2Metro, Nesk Only, Thiagão, Brunno Ramos e Victin são alguns nomes que estão na linha de frente desse “levante”.

Mas diferente dos rappers pioneiros, os trappers estão seguindo uma estratégia diferente. O objetivo não tem sido falar para os de fora, e sim para quem já conhece o evangelho. Dessa forma, as letras também ficaram menos politizadas e com uma linguagem mais evangélica, com um vocabulário que muitas vezes só é entendido pelos próprios cristãos.

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Nesk Only & 2metro – Limitado

Seguir por esse caminho não flexibilizou a inserção da música Rap nos cultos dominicais. Observando de perto o desenvolvimento do Rap Gospel no Brasil, concluo que dificilmente qualquer um dos seus subgêneros serão aceitos pelos líderes religiosos. Eles apenas toleram porque o usam para manter os jovens saciados dentro da igreja e não busquem fora dela esse mesmo tipo de música – o que é uma utopia.

Por outro lado, o Rap Gospel tem servido como porta de entrada para jovens que, mesmo morando nas periferias, não tiveram contato ou acesso ao Hip-Hop. Isso parece estranho, mas é real. Muitas pessoas conheceram o Rap e os elementos da cultura HH dentro da igreja. É uma forma estratégica, até inconsciente, de hackear o sistema por dentro. Isso é muito Hip-Hop!

Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre o Pixo Paraense, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!

Texto por: Adailton Moura

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