A história da cultura Hip-Hop no Brasil e uma análise/teoria do porquê a cultura deu tão certo aqui
Na minha formação musical, encontrei o título de um disco que sempre chamou, e chama, a minha atenção. O disco em questão, é o primeiro álbum solo do rapper paulista Rael da Rima, “MP3: Música Popular do Terceiro Mundo”. O trampo é um bom disco, com a essência daquela era de 2010 do Rap nacional. Mas meu foco aqui não é falar dos beats, linhas e temáticas (quem sabe um dia…), mas sim focar na expressão Música Popular do Terceiro Mundo.
Música Popular do Terceiro Mundo
Afinal o que é a música desse terceiro mundo chamado Brasil? Quais são suas características? O que ela fala e com quem ela fala? Quem faz essa música? E qual o impacto dela em torno do mundo?
Para mim, essa MP3 são as sonoridades produzidas em terras brasileiras que, cada vez mais, ganham espaço mundo afora. Olhando para a história recente da nossa música, temos diversos casos da música BR que marcaram os gringos e influenciaram a forma deles fazerem arte.
Um exemplo bem famoso é a obsessão do músico Kurt Cobain, líder da banda Nirvana, pelos Mutantes. O músico ficou travado na psicodelia da banda tropicalistas e nos efeitos únicos de guitarra, que eram criados pelo próprio grupo. Conta a história, que Kurt tentou entregar um bilhete de admiração a Arnaldo Baptista durante a passagem da banda ao Brasil em 1993. Outro artista que buscou refs em um disco brasileiro foi Alex Turner, vocalista da banda Arctic Monkeys. Em entrevista cedida em 2018, o artista contou que “o disco do tênis” do mineiro Lô Borges foi uma escuta constante para a produção do sexto álbum da banda britânica.
Em 2022, foi a vez do pianista estadunidense Jon Batiste se entregar à Música Popular do Terceiro Mundo. Em entrevista à CNN, o artista mandou um recado para a cirandeira pernambucana Lia de Itamaracá, dizendo que queria encontrá-la e trampar com ela. Na entrevista, Batiste menciona a artista, que carrega o título de patrimônio cultural do estado de Pernambuco, como uma das suas grandes inspirações. O encontro aconteceu no C6 Fest de 2023 nas apresentações de John em São Paulo e Rio de Janeiro.
Trazendo pro mundo do Rap, já acompanhamos diversas demonstrações de artistas da cultura Hip-Hop de lá de fora se deleitando com a música BR. Quem esquece do Ye e Pharrell Williams curtindo a clássica “Tudo o que você podia ser”?
Geral viu o Mos Def cantando “Deixe me ir” do Cartola?
É mais que comprovada a influência da música brasileira no cenário mundial. Porém, quando olhamos para a cultura Hip-Hop encontramos algumas questões nessa relação, e é sobre isso que eu queria falar com vocês.
Hip-Hop nos EUA x Hip-Hop no Brasil
Nossa cultura é datada de 1973, nascida a partir de uma festa onde Kool Herc e sua irmã, Cindy Campbell, promoveram um evento que uniu as manifestações de um movimento em formação, que anos depois viria a ser nomeado Hip-Hop. Aqui no Kalamidade, já falamos sobre esse nascimento da cultura. Confere lá e volta aqui.
A partir de 82/83, a cultura começa a sair dos USA e ganhar o mundo chegando aqui no Brasil. A chegada da cultura Hip-Hop no nosso país foi um divisor de águas para a produção periférica nacional. Pós Hip-Hop, jovens periféricos protagonizando suas próprias histórias, questionaram e reivindicaram espaços que outrora foram negados e criaram um produto artístico de muita qualidade. Ao meu ver, isso só deu tão certo porque antes da chegada, já tinha muito Hip-Hop em solo brasileiro. Eis aqui minha teoria.
A chegada do Hip-Hop no Brasil
A principal forma de propagação da cultura Hip-Hop no Brasil foi por meio do cinema. Com a chegada dos filmes Wild Style e Beat Street nas telonas das capitais nacionais, jovens de todas as partes deram início à chamada Febre do Breaking. Como disse o pesquisador pernambucano Sérgio Paulo:
[…] A gente começou dançando popping e o breaking virou prioridade e virou modismo. Até 1987, 1988, era uma febre dançar breaking no Brasil […] os grupos de breaking foram os primeiros a protagonizar aqui em Pernambuco. Podemos citar aí a Rock Master Crew, a UBI, que no caso é a União Black Independente, a Rock Boys, Banana Breakers, Recife City Breakers.
Em Belém, no Rio e em São Paulo, a propagação do Hip-Hop se deu de forma muito semelhante. Partindo dos cinemas e da febre do Breaking, outras manifestações da cultura começaram a surgir, e o Hip-Hop passou a ganhar corpo no Brasil. Depois dali, veio a Funk Cia, abertura da novela Partido Alto (1984), coletânea Cultura de Rua, São Bento, Racionais MCs, Di Nadi, Sabotage e entre outros grandes marcos para confirmar: o Hip-Hop chegou e aconteceu aqui.
As raízes do Hip-Hop no Brasil
Porém, o fato do Hip-Hop ter dado certo aqui não se deu apenas pelo contato e admiração pela cultura que vinha de fora, mas da relação de manifestações culturais nossas que já aconteciam aqui antes dos versos “I said-a hip, hop, the hippie, the hippie/To the hip hip hop-a you don’t stop the rock” serem cantarolados numa pizzaria em NY.
No Brasil, o Hip-Hop finca suas raízes nas periferias. Ali ele se depara com questões sociais, estruturais e serve como válvula de escape para a juventude daquela realidade e voz de reivindicação por melhores dias assim como nos USA. Estando na periferia, ele se relaciona com diversas outras músicas populares do terceiro mundo brasileiro. Músicas essas que carregam sua particularidade em sua forma de fazer, porém, com um ponto em comum. Ao meu ver, esse ponto em comum foi um dos grandes catalisadores para que essa cultura estadunidense se sentisse tão em casa por aqui. E esse ponto é o universo do canto falado.
A tecnologia do universo do canto falado
A partir das oficinas de Hip-Hop que tive com o rapper e arte-educador Gaspar Z’África Brasil, aprendi sobre a pesquisa do universo do canto falado. Gaspar é uma referência pois é um dos pioneiros em pesquisar este universo e sua relação com o Rap dos EUA. O rapper diz que essa é uma pesquisa em torno das métricas, vocabulários e levadas presentes na música regional BR.
Os sambas, os cordéis, os aboios, repente e as emboladas são manifestações culturais onde os cantadores e cantadoras constroem rimas no formato de 2/4 ou 4/4, que trabalham com improviso a partir de motes e carregam estruturas de rima semelhantes entre si. Essas características permitem que as letras de cordel ou de repente se “encaixem” nas levadas de samba e do rap pela contagem das sílabas e terminações da rima, estabelecendo a distribuição dessas sílabas no tempo musical. Essa forma de versar está ligada às manifestações em roda que acontecem nas comunidades, aos ritos e crenças das populações e aos costumes e ancestralidades daquela região, e não se contém apenas na parte escrita, mas se desdobram para a relação dos tambores com a palavra.
Segundo o artista, esse universo é “a composição poética das estruturas literárias dos cordelistas, os versos dos emboladores e repentistas, as ladainhas dos capoeiristas, os aboios dos vaqueiros, as métricas dos cirandeiros, os pontos dos jongueiros e as canções ritualísticas dos terreiros”. As histórias, memórias, contos e cantos que compõem essas manifestações são o universo do canto falado.
Nas aulas e oficinas, eu entendi que dentro desse universo, versar no tambor ou no beat eletrônico não tem tanta diferença, porque a essência da rima não está presa na melodia, mas sim nas divisões e relações rítmicas e de tempo. Logo, se um pandeiro está em 4/4, você pode encaixar um verso de Rap que também foi estruturado em 4/4. Essa é a tecnologia do universo do canto falado.
Gaspar se aprofundou nesse universo no seus dois álbuns solo: “Rapsicordélico – Ritmo e poesia psicodélica em cordel” (2014) e “Hip-Hop Caboclo – Em buscas das Batidas brasileiras” (2020). Com produção e direção musical de João Nascimento, ambos projetos propõem estudos das métricas e sonoridades regionais junto ao elemento eletrônico e os versos da música Rap. Os trabalhos colocam em consonância a cultura Hip-Hop e as culturas brasileiras, mostrando aos ouvintes que, em se tratando de Brasil, isso tudo é uma coisa só. Bumbo e caixa com pandeiro, flows e versos urbanos com toques de terreiro são a verdadeira essência do Rap feito no Brasil.
Hip-Hop: cultura nacional e ancestral
Indo um pouco além na discussão, penso que a partir da pesquisa do universo do canto falado podemos afirmar que o Rap feito aqui é um elemento desse tal universo. Tal como o samba ou o repente, o Rap é uma música que usa do improviso, que acontece no formato 2/4 ou 4/4, que tem suas próprias estruturas de rima e acontece na rua em roda.
Ao desembarcar aqui, a música Rap encontrou elementos seus que já existiam por aqui com outros nomes e em outras culturas, e assim, teve maior permeabilidade dos ouvidos e mentes brasileiras. O improviso do partido alto, as disputas versadas dos repentistas, as rimas internas dos coco são elementos da música Rap que sempre estiveram presentes aqui, porém em outras vozes, em outros corpos. Mas estavam presentes aqui. Logo, quando a cultura chega em 1983, parte dela já acontecia há décadas.
Outros pontos como a sobrevivência social, as estratégias de luta por direitos, a busca por conhecimento ancestral também fazem do Hip-Hop, elemento presente na formação do que é fazer Hip-Hop aqui. Sim, o Breaking nacional, assim como o Graffiti e o elemento DJ, tem suas particularidades que o deixam único em relação ao Hip-Hop de fora. Porém, falar sobre o uso da palavra e do verso é traçar uma linha de passado, presente e futuro pensando o Hip-Hop como uma cultura extremamente nacional e ancestral.