Salve! Meu nome é João Assunção, sou o responsável pelo Instagram do Kalamidade e eventualmente vou dar as caras aqui no site com um ou outro texto. E falando em texto, esse que você lê agora é o que eu escolhi para a minha estreia aqui no site, então, vem comigo!
Seguinte, para começar esse texto sem muita enrolação, eu vou direto ao ponto com uma pergunta bem simples: você aí, já parou pra prestar atenção nas relações multiculturais que a cultura Hip-Hop estabeleceu com o tempo?
Pergunto isso, porque é muito comum resumir a cultura Hip-Hop inteira a “apenas” um estilo musical, em que a junção com demais estilos advindos de outras culturas possui uma grande adesão e é feita com uma frequência considerável. E exemplos disso não faltam, afinal de contas, o que mais vemos por aí é o frequente (e necessário) casamento de estilos musicais como o Rock n’ Roll, Jazz e até mesmo o K-Pop com o Rap.
Quem observa de forma superficial essa relação amigável com outros estilos musicais que o Rap estabeleceu, muitas vezes esquece (ou simplesmente não sabe) que a cultura Hip-Hop, antes de alcançar o status que possui hoje, foi diretamente influenciada em seu cerne por culturas que vão além do que o ocidente pode oferecer – e neste caso, me refiro à cultura chinesa.
Para traçar esse paralelo, é preciso enxergar o passado para entender o futuro. E com “passado”, me refiro especificamente à Nova Iorque dos anos 70, quando a cultura Hip-Hop nasceu, lá no bairro do Bronx.
Naquela época, filmes e séries que buscavam no Kung-Fu uma fonte de inspiração (a exemplo da série “Kung-Fu” e do filme “Operação Dragão”) eram uma verdadeira febre entre os jovens dos guetos nova-iorquinos. E isso aconteceu porque a molecada da época se identificava com as pautas levantadas nos subtextos dessas produções audiovisuais, que continham um forte tom anti-imperialista ao mesmo tempo em que mostravam grandes histórias de superação, que por sua vez, impulsionavam os jovens a correrem pelo certo.
Em tempo, foi na mesma época que os guetos de Hong-Kong e os de Nova Iorque provavelmente atingiram o maior nível de semelhança entre si. Ambas as megalópoles passavam por booms econômicos em larga escala, que obviamente beneficiavam apenas as classes média e alta. Tal acentuação das desigualdades sociais fez com que os guetos dessas duas cidades passassem por uma série de problemas, como guerras entre gangues, a falta de estrutura básica e a violência cotidiana.
Foi a partir da soma desses fatores que a ascensão do movimento Hip-Hop finalmente aconteceu, e acabou por encontrar no Kung-Fu e nas representações audiovisuais da cultura chinesa (que retratavam o embate do homem contra um sistema opressor) uma forma de impulsionar suas ramificações através da inspiração advindas desses produtos.
Do break-dance (que teve passos como o “moinho” criados a partir da influência do Kung-Fu), passando até mesmo pela criação e atribuição de nomes para grandes e importantes grupos do Rap (como o Wu-Tang Clan), o Hip-Hop incorporou a cultura chinesa às suas raízes, identificando-se com seus problemas sociais e também com sua eventual ascensão.
Foi graças às ramificações criadas com a cultura chinesa nos anos 70 que, hoje, o Hip-Hop pode nos proporcionar atos monumentais como a apresentação do Kendrick Lamar no Coachella (e a própria ligação do MC com a cultura oriental), e a utilização de samples e assuntos ligados às temáticas da época levantadas em tracks de músicos contemporâneos como Rashid, Emicida e a galera da Sound Food Gang
Mas essa influência toda exercida pela cultura oriental na cena do Hip-Hop é uma via de mão dupla. E é no ponto em que essas vias se encontram que chegamos no anime “Samurai Champloo” (2005), dirigido pelo japonês Shinichiro Watanabe.
O nome “Champloo” tem sua origem na palavra “Champuruu”, que significa “misturar”. E é a partir desta mistura, presente logo no nome da obra, que temos uma prévia do conteúdo que ela nos apresenta ao longo de seus 26 episódios.
“Samurai Champloo” se passa no período Edo do Japão, mais especificamente na era Tokugawa, que é quando absolutamente TUDO que tivesse relação com estrangeiros (sobretudo ocidentais) era proibido no território nipônico. Essa era também marca o início do fim da idade de ouro dos samurais, que viram a arte da espada ser substituída gradativamente pela prática política e tal qual os MC’s, pelo exercício da caneta.
Essa forma de exercício do poder que o Japão da era Edo e os MC’s contemporâneos encontraram na caneta, é refletida logo na abertura da animação (chamada “Battlecry”), que mistura takes da história que os personagens centrais possuem ao longo da obra centralizada no Japão da época, com um delicioso Rap composto pelo finado produtor e DJ Nujabes, que nos deixou em fevereiro de 2010. Um detalhe curioso sobre essa abertura, é que ela é calcada no famoso Lo-Fi Hip-Hop, um estilo que graças ao Nujabes foi popularizado na cena japonesa e posteriormente, no restante do mundo.
Saindo da abertura e entrando no universo de “Samurai Champloo”, que se passa numa época repleta de mudanças para todos os lados, temos aqui os três personagens centrais da trama: Fuu, uma garota de quinze anos que tem como objetivo localizar o famigerado “samurai com cheiro de girassóis”; Jin, um rônin de 20 anos criado em dojôs e mestre na arte da espada; e Mugen, que tal qual Jin também domina a mesma arte e tem 20 anos, mas que conta como diferencial o seu total desligamento de diversos traços e costumes que imperavam aquela era (como a recusa em usar quimonos da mesma forma que os demais personagens da animação, sua forma de se comportar, etc).
Como comentei, a cultura Hip-Hop, desde a sua concepção, foi fortemente influenciada pela asiática. Mas em “Samurai Champloo”, vemos que essa influência foi mútua, e que o Hip-Hop posteriormente assumiu o papel de influenciador, passando a inspirar não só o campo do audiovisual, como também a moda e o comportamento de muitos habitantes de países asiáticos.
São diversos traços da cultura Hip-Hop presentes na obra de Shinichiro Watanabe. E esses traços são tão intrinsecamente ligados que sem eles a obra perderia completamente o seu sentido.
Considerando que os animes, enquanto mídias televisivas/audiovisuais, são consumidos no Japão da mesma forma que as novelas são consumidas aqui no Brasil, é natural chegar à conclusão de que estas obras influenciam aqueles que as assistem, e também, é natural chegar ao entendimento de que essas mesmas obras também são um reflexo do “mundo real”.
É aí que voltamos a Mugen, personagem que talvez seja o melhor exemplo desse reflexo. Nele, vemos que o Hip-Hop é parte fundamental para a construção de sua personalidade. Elementos como as roupas do personagem, o vocabulário recheado de gírias, o comportamento e até mesmo a forma de lutar contra outros espadachins (em que Mugen usa movimentos de break-dance enquanto manuseia a espada), ressaltam a proximidade e a identificação que parcela considerável da população japonesa possui com a cultura Hip-Hop.
O anime também conta com uma trilha-sonora liderada por Nujabes e pelo DJ e produtor Fat Jon, que é inteiramente dedicada ao Rap e suas ramificações. E seguindo essa premissa, entre os efeitos especiais variados existentes no anime, a inserção do som de scratchs quando rola alguma transição de um espaço para o outro, ou mesmo como substituto do famoso som de censura quando algum personagem da trama acaba falando algum palavrão, também acaba por marcar a presença da influência do Hip-Hop na trama.
E essa influência toda do Hip-Hop não para “somente” em Mugen e em um punhado de efeitos especiais não, viu? O impacto do Hip-Hop no universo de “Samurai Champloo” também passa pelos personagens coadjuvantes, que de vez em quando aparecem trocando umas rimas, ou andando em bando e se comportando como verdadeiros gangstas estadunidenses, com maneirismos característicos e vocabulário próprio.
Isso faz de “Samurai Champloo” um ótimo exemplo de mídia asiática que reproduz aspectos da cultura Hip-Hop como base para o seu universo particular, mas não o único! Em uma rápida pesquisa, é possível encontrar animes como “Afro Samurai”, que conta com Samuel L. Jackson no elenco de dubladores e RZA, do Wu-Tang Clan, na trilha sonora; entender o porquê da presença frequente (e quase obrigatória) de pelo menos um verso de Rap em músicas de K-Pop; conhecer mais a fundo a mescla da cultura Hip-Hop com a moda e o lifestyle Japonês e Coreano… E por aí vai!
O ponto que eu quero chegar com esse texto é que, por vezes, não nos damos conta da dimensão que o Hip-Hop conseguiu atingir desde a sua criação.
Entender como uma cultura riquíssima como a Hip-Hop conseguiu influenciar até mesmo culturas e elementos que influenciaram sua criação, e impulsionaram sua posterior ascensão, é essencial para que possamos compreender quais são as melhores formas de agir não só enquanto consumidores, como também enquanto pessoas que respiram essa cultura em prol do desenvolvimento da mesma.
Tal qual o significado de “Champloo”, o Hip-Hop nasceu de uma mistura, e para que essa mistura continue se desenvolvendo, é necessário que todos aqueles que a compõem continuem em movimento. E para que possamos continuar nos movimentando, precisamos compreender como culturas e contextos sociais diferentes dos nossos entendem o Hip-Hop e o inserem em suas vidas.
Só assim o Hip-Hop poderá continuar com o seu caráter afirmativo e revolucionário independentemente de qual dos quatro cantos do mundo ele ocupe.