O futuro do Projeto Rappers através da icônica Revista Pode Crê!
Recentemente, falamos aqui da importância política do Projeto Rappers e como mulheres negras organizadas foram primordiais para a sobrevivência do Rap em solo nacional. Hoje é dia de falar sobre o fruto do projeto, a icônica Revista Pode Crê!
No Brasil, a mídia underground do Rap nacional teve um papel relevante, ao contar histórias e conectá-las a mais pessoas. Há um tempo atrás, até comentamos sobre o corre das mídias independentes e o jornalismo cultural. Se hoje, a mídia independente segue suando para cobrir tudo que acontece no nosso mundinho, imagina antigamente. Sem grana, sem investimento e sem espaço. Por isso, é importante entender como o conhecimento era passado.
Antes de consumirmos tudo através de telas pixeladas, as ideias vinham de uma forma muito diferente. Na era em que muito se fala sobre conteúdo, a história nos lembra da importância do formato. Desde a invenção da comunicação, a propagação de ideias se aprimora junto com os formatos, e atualmente, são múltiplas as formas de como as ideias chegam até nós.
No Hip-Hop, a revista foi um meio crucial para a disseminação de ideias, sons, estilo de vida, comportamento e moda. Nos Estados Unidos, a partir da década de 1980, publicações como XXL, Word Up!, Yo! e The Source tornaram-se referências ao abordar diversos aspectos da nossa cultura, explorando territórios e moldando o comportamento de quem as consumia.
Na década de 1990, o Brasil já estava vivendo o Hip-Hop, mas lutava para existir – apesar da violência policial – e buscava expandir seu estilo de vida. Na mesma década, um projeto inovador escolheu estruturar as novas ideias e potencializar a criatividade de uma juventude negra através do formato de revista. Essas publicações tornaram-se quase que um manifesto da cultura Hip-Hop, não apenas para conectar e inspirar, mas também para documentar e legitimar o nascimento de um estilo de vida.
Fruto do Projeto Rappers, a Revista Pode Crê! é um importante instrumento de memória das nossas origens e pioneira no registro do que estava rolando na década de 1990. Em quatro edições, “atravessou o centro e conectou com todas as periferias”, exercendo o pioneirismo em termos de mídia. Para celebrar os 30 anos de sua criação, o Geledés recontou a história da revista em um Fac-Símile e aprofundou os frutos do projeto educacional no Podcast PodeCrê.
Pode Crê: luz na história
No Fac-Símile, Flávio Carrança, editor chefe da Revista Pode Crê!, entende que este é um importante registro “do surgimento e fase inicial do Hip-Hop no Brasil” e “demonstra a viabilidade de um projeto editorial voltado para o público predominantemente negro”.
A imprensa é o instrumento de validação e transmissão de ideias, onde as mídias, em seus conglomerados dirigidos pelas classes dominantes – quem aí lembra de Succession – ditam quais ideias são válidas. O registro do povo preto sempre passou pelo crivo dessas classes e a nossa memória foi diminuida a estereótipos: a inferioridade da cor para legitimar o trabalho escravo, a perpetuação da ideia de negros violentos e a sexualização das mulheres negras. Jamais vistos e retratados em grandeza.
A Revista Pode Crê! mudou isso nos anos 1990, Clodoaldo Arruda comenta que, para a juventude da época foi transformador uma revista com muitas caras pretas, onde é possível se ver, reconhecer e engrandecer aqueles jovens e o futuro que construíam.
A revista teve contribuição de integrantes do Projeto Rappers, membros do Geledés e personalidades importantes da cena. A primeira edição traz na capa Mano Brown, no auge de seus 23 anos e a história do movimento na São Bento. Vítima Fatal é capa da segunda edição e chama a atenção para a necessidade de profissionalização do Rap Nacional.
Disponível em: https://www.geledes.org.br/revista-pode-cre-memoria-institucional/
Diretamente do Distrito Federal, o grupo Câmbio Negro estampa a terceira edição.
A quarta e última edição Thaíde & DJ Hum abrem caminhos para a lendária última entrevista de Bezerra da Silva. Além das matérias e perspectivas diferentes, os posters eram o ponto alto.
Algumas colunas fixas causavam certas polêmicas, como Acontecendo, feita por Skinny – aka Tina Costa – com “notas variadas sobre a vida do Hip-Hop”. A coluna ia atrás de notícias que as pessoas não sabiam, isso fez Skinny colecionar alguns inimigos e, como a mesma diz, porque “por não ser da música, […] tinha um olhar diferenciado e conseguia ver umas coisas que as pessoas ficavam tão mergulhadas naquele universo não viam, fazia isso em texto e nem todo mundo gostava daquilo”.
A perspectiva feminina sempre foi apagada em espaços considerados “masculinos”. Felizmente, a revista já era bem mais pra frente. Nas edições, a perspectiva e participação ativa de mulheres dentro do movimento era abordada com textos que levam à reflexão desse não-lugar que as mulheres do movimento passavam – e ainda passam -, e qual futuro coletivo querem construir.
Futuro sendo desenhado, nos anos 2000, se fortalecendo enquanto movimento com o Minas da Rima, indo para outros Estados e coletivos e, atualmente, com a consolidação coletiva da Frente Nacional de Mulheres no Hip Hop. O movimento que, infelizmente, tem o peso do machismo, sexismo e homofobia marcados.
Identidade Visual
A edição número 0 foi criada por Nilza Iraci, coordenadora de comunicação do Geledés na época. No Podcast PodeCrê, Arruda conta que Nilza trouxe a proposta de colagem para a edição zero, com as fotos de quem estava participando do projeto, dando cara para quem estava fazendo a revista.
Depois da edição zero, a concepção da identidade visual das próximas edições ficou entre Flávio Carrança, Nelson Alves e o fotógrafo Mário Espinoza. Marco Antônio Silva, Markão do grupo DMN e Realidade Cruel, mostrou a Carrança algumas revistas de Hip-Hop gringas que poderiam inspirar a publicação. As ideias visuais exploraram estéticas similares de revistas como a XXL, Yo, World Up, Spice! e outras grandes publicações que marcaram os anos 1980 e 1990.
Alguns elementos explorados começaram a traçar o imaginário visual do nosso movimento. O uso de fontes marcantes com cores e ilustrações caricatas, criam um contraste com as poses marrentas, levando a um visual contemporâneo de maior assimilação. Os títulos das matérias exploravam os poucos movimentos permitidos dentro do formato impresso e sua produção. Os textos brincando com a escala eram um importante recurso visual da época, muito usado na mídia impressa.
Últimas páginas
Mesmo com apenas quatro edições, a Revista Pode Crê! se tornou um marco que abriu portas para futuras publicações voltadas ao público negro. O seu real pioneirismo foi começo para o surgimento de revistas icônicas como a grandiosa Revista Raça Brasil (1996) e a Revista Rap Brasil (1999).
Essas publicações continuaram o legado da Pode Crê!, ampliando a representatividade e celebrando a cultura, a arte e as conquistas da comunidade negra, pavimentando uma nova virada na mídia brasileira.
No cenário do Hip-Hop, o formato revista foi o pioneiro no registro do começo do nosso movimento no Brasil, disseminando novas ideias, jeitos, artistas e, principalmente, o que estava acontecendo nas quebradas. Cada edição não apenas informava, mas também educava e inspirava, ajudando a moldar a identidade de uma geração que buscava se reconhecer e se afirmar.
A celebração dos 30 anos da Revista Pode Crê! pelo Geledés, não apenas reconta a história da revista, mas também aprofunda os frutos do projeto educacional no Podcast PodeCrê. A gente ainda ouve a reverberação dessas rimas até hoje e essas vozes moldaram o movimento e garantiram a sobrevivência dele.
Em uma era dominada pelo consumo digital, tudo que é impresso e físico vira um poderoso lembrete do caminho que ainda temos a percorrer. É nas movimentações ancestrais que encontramos o beabá de como se fala e registra a memória do Hip-Hop Nacional: em coletivo, nas mais diversas interseções e, acima de tudo, com muita pesquisa.
No próximo dia 10 de agosto, no Ação Coletiva, vai rolar o lançamento da primeira edição da Revista Kalamidade. A revista conta um pouco sobre algumas histórias do Hip-Hop ao longo desses 51 anos de história. A partir das 15h, vamos conversar com Rubia RPW, Nino Brown e Alexandre de Maio sobre esses 50 anos de movimento. Além disso, vai rolar distribuição gratuita da revista e DJ set para balançar geral. Nos vemos lá!
Aproveita também pra ler a nossa última matéria com uma entrevista com o produtor e MC CABÊS falando sobre a evolução da cultura Hip-Hop em Curitiba, e fica de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!
Texto por: Biatriz Lima
Referências
https://www.bocadaforte.com.br/destaque-bf/projeto-rappers-e-revista-pode-cre-celebram-os-30-anos-de-historia#:~:text=celebram%20os%2030%20anos%20de%20hist%C3%B3ria,-Gil%20BF&text=No%20dia%2013%20de%20dezembro,no%20formato%20fac%2Ds%C3%ADmile
https://fliphtml5.com/gyuuu/owwd/Revista_Pode_Cr%C3%AA/
https://artsandculture.google.com/asset/revista-%E2%80%9Cpode-cr%C3%AA-%E2%80%9D-acervo-geled%C3%A9s/jgHY4q4aSzytsA