Ella Fitzgerald e Dizzy Gillespie Jazz Kalamidade
Ella Fitzgerald e Dizzy Gillespie Jazz Kalamidade

Jazz: depois de um século

No Dia Internacional do Jazz, o Kalamidade presta uma homenagem ao gênero secular.

Falar sobre Jazz não é fácil. Afinal, o gênero tem mais de um século de história e tem tantos subgêneros e particularidades que nem Eric Hobsbawm, em seu livro “A História Social do Jazz”, ousou cravar sua análise como algo definitivo acerca da história, da potência e do legado que o Jazz deixa na história. 

Pensando nisso, no momento em que nós do Kalamidade pensamos em contar sobre a cena desse gênero, aplicamos um recorte. E por meio dele, tentamos contar um pouco dos contextos do Jazz e a sua importância pro Hip-Hop.

Origem

Tendo seus primeiros registros datados de 1915 na “Jelly Roll Blues”, o som de Jelly Roll Morton já apresentava as primeiras características de um estilo que circulava pelas ruas de New Orleans desde 1895 – neste recorte desconsideramos atribuir o primeiro registro à Original Dixieland Jass Band. Veja, o Jazz surgiu no ponto de intersecção das culturas, africana, francesa, espanhola e anglo-saxã devido às origens da própria New Orleans, que antes da guerra civil estadunidense havia sido colônia francesa e espanhola.

Na foto: Ella Fitzgerald (1946). por William P. Gottlieb

A pluralidade cultural da cidade forneceu as condições para o Jazz surgir da fusão de dois tipos de música popular: a rural, se apropriando do ritmo e da sonoridade no estilo “pergunta e resposta” vindos do Blues e da música Gospel; e a urbana, de onde tomou as escalas harmônicas européias usadas pelas fanfarras de Ragtime da cidade. Essa fusão de dois tipos de música pop fizeram com que o Jazz fosse, aos poucos, ganhando espaço no dia a dia da comunidade da cidade – que tinha o costume de ter bandas tocando em eventos que iam de piqueniques, a comícios e funerais.  

Milles Davis, por Jim Marshall

A princípio, destaco três momentos fundamentais para o Jazz que, ao longo do seu século de existência o levaram aos moldes que hoje conhecemos. 

O período até 1941

Período de evolução em que o Jazz se consagrou e se buscou se estabelecer comercialmente, estabelecendo os padrões de arranjos e ritmo que caracterizam o gênero. Adaptando as músicas populares da época para o mesmo de forma que teve o seu ápice nas big bands de Jazz Foi um período marcado por nomes como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Duke Ellington e Benny Goodman que dominavam a cena em apresentações para um público que, de modos gerais buscava esquecer o passado sofrido e só queria entretenimento. 

A revolução do Jazz

Marcado pelos movimentos do Bebop, do Cool e do Revival e que tinham como ponto em comum uma guinada intencional no estilo que o Jazz tocado até então vinha seguindo. É o momento em que os músicos de Jazz tomavam consciência de si e faziam das suas performances um manifesto anti capitalista – pois eram contra o que o Jazz havia se tornado na tentativa de se adequar a indústria – e anti racista. 

Nesse sentido, afirmando que o Jazz na sua essência não é uma música padronizada ou produzida em série. O Bebop, mais especificamente tinha a intenção de soar dissonante, anárquico e tecnicamente tão difícil de ser tocada a ponto de ficar quase que inacessível para os músicos brancos que haviam se apropriado do estilo nas décadas passadas. Essa foi a época de nomes como Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Thelonious Monkey e Bud Powell.

As Jam Sessions

Consequência da revolução que o Jazz passou até os anos 60, as jam sessions eram os refúgios criativos e laboratórios onde os músicos tocavam entre si. Nas palavras de Jo Jones “Aqueles eram tempos bastante difíceis e, no entanto, os caras ainda achavam tempo para estudar, e quando encontravam algo novo, traziam para a sessão e mostravam aos outros músicos, qualquer que fosse o instrumento por eles tocado. Assim,eles tentavam aquele riff específico ou aquela concepção especial em uma sessão e o aperfeiçoavam. A ideia de uma jam session, portanto, não era mostrar quem tocava melhor do que o outro, era uma questão de fazer uma contribuição para a experimentação. As jam sessions eram a nossa diversão, a nossa válvula de escape”

Dizzy Gillespie (1948) Wikimedia

Afinal, o que é o Jazz?

O Jazz é um estilo de música caracterizado pelas suas harmonias complexas, ritmo sincopado e forte ênfase na improvisação. O gênero se define muito mais pelo estilo apresentação do que pelo método de composição especificamente. Tem em sua essência o desejo de não ser uma música padronizada ou produzida em série.

Muito do Jazz vem do próprio músico que performa a música, ou tema proposto. Vem da vivência, do aprendizado e das experimentações que o músico aperfeiçoou. Todavia, acima de tudo vem do Blues, os sentimentos que os músicos transmitem através dos instrumentos. Que por sua vez, conversam com os outros instrumentos num esquema de pergunta e resposta. O Jazz é o que os músicos individuais fizerem dele, e cada músico tem sua voz própria. 

Uma apresentação de Jazz – aqui faço um recorte usando as estruturas do swing, bebop e post bop – pode ser tradicionalmente caracterizada por dois momentos: tema e improviso. O tema é o núcleo da música. É onde geralmente todos os instrumentos são tocados juntos de forma a apresentar ao público o ritmo e a harmonia escolhidas para tocar a música. Já o improviso é o momento em que os músicos podem solar e mostrar sua interpretação da música. Esses dois momentos vão sendo alternados durante a performance, seguindo os fundamentos tanto do blues de 12 e de 32 compassos, quanto também na música clássica.

Seus instrumentos mais clássicos são a bateria, guitarra, baixo, saxofone, trompete, trombone e piano com diferentes arranjos a depender do sub gênero de análise. No entanto, também encontram espaço instrumentos não convencionais como a washboard no jazz cigano e a chaleira de Hermeto Pascoal no free jazz.

O Jazz, não tem forma oficial, estabelecida ou previsível. É um gênero vivo e em constante evolução e caso não fosse, não seria o Jazz.

A Tribe Called Quest – Composição: HANDOUT

Jazz no Hip-Hop

Jazz e Hip-Hop tem origens comuns na forma. Ambos são gêneros criados por populações negras e periféricas, que buscavam entretenimento como forma de esquecer e dar fôlego à realidade em que viviam. Porém o Hip-Hop, desde sua origem, bebe muito do Jazz através do sample.

O Jazz começou a ser incorporado no Hip-Hop através dos samples, que serviam de base melódica para os beats que o MC rimaria em cima. Os anos 80 e 90 foram marcados por grandes sucessos que levavam samples de Jazz, como “N. Y. State of Mind” do Nas (sampleando Ahmad Jamal) e “Cool Like That” do Digable Planets. Além de De La Soul e Jungle Brothers.

O Hip-Hop sempre olhou para o Jazz, mas durante os anos 90 o Jazz também passou a olhar para o Hip-Hop. Estra troca se colocou como forma de continuar a expansão e experimentação musical que o gênero pede. E foi daí que o contrabaixista Ron Carter participou, em 1991, da gravação do The Low End Theory (A Tribe Called Quest), a convite de Q-Tip. Esse convite marca a consolidação dos gêneros e o surgimento do Jazz Rap. 

No ano seguinte, 1992, Miles Davis lança Doo-Bop mostrando um jazzista que buscava fazer experimentações com o Funk e o Hip-Hop.

A fusão do Jazz com o Rap rende frutos incríveis até os dias atuais. Como, por exemplo, as parcerias entre Ghostface Killah e BadBadNotGood, o trampo impecável do Zudizilla, ou o projeto Hip-Hop Machine do jazzista Leo Gandelman.

Penso que, para além da fusão de estilos propriamente dita, os gêneros carregam nas veias a consciência política que os atores têm. Na forma de expressão popular inicialmente marginalizada, na consciência da necessidade de um constante aprendizado e troca entre os seus (no flow e caneta pro MC, nas rotinas e pesquisas pro DJ). Na arte da improvisação. Mas, acima de tudo, por ser um gênero que se basta em si. 

Ou, na palavras de Harry Carney:

“A gente toca jazz pelo prazer, e não para fazer história”

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