Como o pixo se entrelaça com a cultura e resistência em Belém, através da voz e arte do artista Sant0.
Salve família! Essa matéria é a primeira parte de uma série que investiga a arte do pixo. Ao longo dessa trajetória, vamos investigar histórias, influências, perspectivas e estéticas do pixo em diferentes cenários urbanos do Brasil.
Andando pelas ruas da capital paraense, é impossível não se deixar levar pelo fluxo intenso da arte urbana e marginal. Enraizada na cultura amazônica, entre rios e ruas, Belém carrega as marcas do racismo e das dinâmicas de poder que moldaram o Brasil.
A cidade se torna um campo de batalha simbólico para a população afro-indígena, onde o pixo e o grafite são meios de contestar narrativas coloniais e reimaginar a paisagem social e cultural da cidade. Ao compor, samplear, dançar e pintar sua marca, artistas de rua tecem suas narrativas visuais, as que celebram a resistência das comunidades marginalizadas.
Convidamos o artista Sant0 para conversar sobre o pixo paraense. Sua paixão pela arte, especialmente influenciada por Banksy e pelo stencil, o guiou a uma decisão crucial: abandonar a faculdade de contabilidade no último ano para se aventurar no mundo artístico. A conexão de Sant0 com o pixo e o grafite começou cedo, influenciado por um ambiente familiar que já flertava com essas expressões.
“Crescer em Belém é estar constantemente rodeado pela pixação. Mesmo como uma criança desenhando, eu estava imerso nessa linguagem visual”, ele explica. Uma experiência chave foi a oportunidade de pintar um mural na escola, despertando seu interesse pela arte de rua.
A determinação de Sant0 em seguir seu coração o levou a explorar a arte fora dos limites tradicionais. “Eu e meu amigo Lima decidimos que nossa arte deveria transcender as galerias, levando nossa mensagem para as ruas, onde poderia alcançar nossa comunidade diretamente”, conclui. Para ele, o grafite e o pixo são mais do que arte; são veículos de expressão e conexão com suas raízes e sua cidade.
Hip-Hop no Pará
O Hip-Hop no Pará se consolida em conexão com outros jeitos de se fazer o Hip-Hop vindo do estrangeiro inspirado no breaking já praticado pelo Funk Cia. de Nelson Triunfo em São Paulo e alavancado pela estreia do filme Beat Street em 1984. Os pioneiros do break no Pará foram os “Electro Boys”, “Irmãos Break”, “Brazilian Break” e “Scorpions Colors”. Junto com os MCs e os DJs, o Pixo e o Graffiti contribuem com a difusão da expressão da juventude afro-índigena na região amazônica como um todo.
O Pixo e o Hip-Hop
No coração da cultura urbana de Belém, o pixo emerge como uma expressão próxima do Hip-Hop. Sant0 reflete sobre essa ligação, observando que, independentemente das preferências musicais que possam variar entre os artistas, a essência do Hip-Hop permeia a prática do pixo. “Cara, o pixo não tem como se desvincular do Hip-Hop em si”, ele pontua.
Por mais que o termo gringo “Hip-Hop” tenha sido popularizado, a cultura de rua e sua manifestação artistica underground já era praticada e também associada a marginalidade. A cultura de gangues em Belém, que promovia festas de House, Euro Dance e Techno – o que escutamos de pessoas mais velhas chamar de Midback ou Flash House – junto com os punks e surfistas já faziam uso do Pixo como forma de registrar a sua marca pelas ruas e como forma de provocação, não só entre gangues, mas também como forma de reivindicar seu espaço na sociedade burguesa.
O pixo se juntou ao graffiti por meio de sua essência e pelo desejo de experimentar. Essa conexão entre pixo e graffiti é relatada por Sant0:
Hip-hop veio se misturar com o grafite depois dessa junção entre pixação, que a galera veio com intenção de fazer grafite, vindo de outros lugares, do que se via na revista, porque era muito escasso a informação. Tem um amigo meu que veio do Maranhão que fala que era uma batalha pra descobrir sobre ter essa cultura e estudar ela como letra, porque o grafite vem da letra também, a origem vem da letra pra fazer o Bomb, fazer o Wind Style, das tags e acho que ela vem muito introduzida a partir da pixação, que vai riscando a parede e botando tinta na parede e que veio com uma levada do grafite de fora, se espelhando na galera que trazia revista, que tinha acesso a revistas. Então a pixação veio daí também, do usar o spray como principal produto/marcador de se fazer o pixo, como principal suporte de deixar sua marca e sair fora. A pixação influenciou muito a galera a ver o grafite e ir pra rua e tentar escrever teu nome. Mas ainda não tinha essa pegada de pixo né, de demarcação. – Sant0
Grafite e Pixo na cidade
O respeito mútuo entre grafiteiros e pixadores, como conta Sant0, ilustra a ética compartilhada nas ruas. “Tem um respeito entre grafiteiro e pixador de não passar por cima um do outro”, ele explica, destacando um código de honra que rege a arte urbana. E também a inspiração de grafiteiros/as, não só na forma de se fazer a letra, mas também nos personagens de desenhos animados que são feitos na pixação e incorporados no grafite. Sant0 diz: “Lógico que não vou dizer 100%, mas geralmente quem tá começando sempre segue uma linha que se enxerga a pixação como raiz.” Essa dinâmica destaca não só a diversidade de estilos e expressões mas também a solidariedade entre aqueles que veem na cidade um espaço de diálogo e resistência.
Para o artista, o grafite em Belém, assim como em outros lugares do país, é bem mais quisto, tanto pela população local quanto pelo Estado. Na periferia, a arte é mais bem recebida. “Quando estamos pintando na quebrada, as pessoas vêm conversar, oferecem água, refrigerante, até comida”, relata Sant0. Mas se falarmos do centro da cidade, a prática do grafite pode ser vista como uma intrusão, uma marca indesejada no espaço urbano.
Ele descreve como, nesses locais, artistas de rua podem se tornar “invisíveis” para a comunidade ou, pior, alvos de confronto. “Você tá lá para relaxar e se expressar”, ele fala, “mas acaba sendo confrontado, como se você não tivesse nenhum direito de estar ali.” No caso do pixo, em qualquer local é sempre visto como um problema, justamente pelo seu caráter de arte vandal e de rivalidade entre pixadores.
Cara, o local é muito importante na verdade, né? Pro grafite também. Eu acho que o grafite é mais bem visto assim quanto mais durar melhor né? Uma avenida principal na frente de alguns órgãos onde haja uma circulação maior. Pro Pixo aqui de Belém, quanto mais visível ele for, bem melhor. Quanto mais alto, quanto mais perigoso, quanto menos acessível for pra alguém estar, né conseguir chegar no local. Conta muito, muito mesmo. Fora que ainda existe a galera que vai e desbloqueia uma tela, como eu falo, pega primeiro a vez e aí a pessoa vai lá e ainda atropela ele quando rival. Então quer dizer, quanto mais alto, menos acessível for pra pessoa te alcançar melhor. Aqui em Belém é assim também, sabe? Tem a galera que que escala mesmo o prédio mas aqui é bem diferente, mas a gente também vê em São Paulo né? Pessoal lá é cada um no teu quadrado. Já são separadas uma da outra, sempre respeitando querendo ou não, aqui é porque o bicho pega mesmo. – Sant0
Diferenças entre pixo de Belém e no Sudeste
Na busca de entender o que diferencia tanto assim o pixo de Belém do que é visto no Sudeste do Brasil, ele aponta para a tipografia arredondada e as referências regionais como uma das principais distinções estéticas que marcam o pixo paraense. “Aqui, os pixadores criam um enigma visual, um signo que só quem está imerso nessa cultura consegue decifrar”, explica Sant0, ressaltando a natureza codificada da pixação local.
Isso vai em contraste com o estilo visto em São Paulo, onde os traços tendem a ser mais retos e simétricos, inspirados e feitos para rasgar os prédios e edifícios da cidade. Sant0 observa que, enquanto o Sul e Sudeste podem apresentar uma estética mais ornamentada e equilibrada, em Belém, a influência do grafismo indígena e marajoara insere elementos únicos nas obras, como asas, auréolas, e escorridões. “Incorporamos figuras conhecidas, como personagens de desenhos animados, dentro dessa estética arredondada, criando uma identidade visual única para o Norte”, ele destaca. Essa mistura de elementos não se limita apenas ao pixo, mas se estende ao grafite e aos murais, onde significados profundos e representações culturais são tecidos diretamente na tela urbana.
Eu vejo que os artistas daqui, desde o pixo até o grafite, até as pessoas que fazem murais, onde tem um grafismo que tem significado indígena, uma tipografia marajoara no meio, um grafismo marajoara no meio da letra, no início, no final, os nomes também. Os vulgos, né? Eles têm uma influência muito grande também. Da cultura pop dos anos noventa/dois mil quanto à cultura regional que é bem mais forte. (…) Personagens indígenas, personagens ribeirinhos, cenários ribeirinhos, cenários de floresta, cenários urbanos que envolvem também as pessoas com o cotidiano daqui, tomando um tacacá, comendo um vatapá, exaltando muito a nossa cultura, sabe? – Sant0
Aliás a distinção entre regiões não é apenas uma questão de estética, mas também de identidade cultural e regional. O pixo em Belém, segundo Sant0, carrega consigo elementos da riqueza cultural da região amazônica, sendo diferente não apenas do que é produzido em São Paulo, mas também oferecendo nuances distintas em comparação ao Rio de Janeiro, onde a prática do Xarpi, apesar de apresentar algumas similaridades, ainda tem bastante diferença.
“Todo mundo que vem, todo mundo que estuda pixo chega e fala: cara, o Norte tem a sua identidade visual com a pixação.”
(I)legalidade
Enquanto o grafite ganha cada vez mais reconhecimento e aceitação nos espaços públicos, se transformando em uma ponte entre a arte de rua e o ambiente das galerias de arte da burguesia, o pixo permanece à margem, envolto em controvérsias e más interpretações. “Realmente, o grafite tem ganhado um espaço muito maior… enquanto a pixação é vista como uma arte marginal, quase sempre explorada por curadores em busca de protesto ou dominação de espaço”, Sant0 explica.
Apesar do preconceito, Sant0 vê no pixo uma expressão única da cultura de rua, que desafia as normas e provoca questionamentos. A transição do pixo para espaços formalizados como galerias de arte, embora rara, serve não apenas para desafiar as percepções sociais mas também para afirmar seu valor cultural e artístico que é inegável.
Quanto ao futuro do pixo e do grafite em Belém, Sant0 mantém uma visão realista. A percepção pública, influenciada pelo acesso crescente à internet e à ampliação das redes de comunicação, pode não mudar significativamente. “A marginalização do pixo também não vai diminuir… porque se não perde a graça”, ele reflete. Por outro lado, o grafite continua a evoluir, proporcionando oportunidades profissionais para artistas que escolhem seguir um caminho menos controverso, transformando sua paixão em profissão.
“A galera não vai parar”, Sant0 assegura, enfatizando a persistência do pixo como uma forma de arte que passa de geração em geração. Ao mesmo tempo, reconhece o valor do grafite comercial como fonte de renda e meio de vida para muitos. Essa dualidade, onde o pixo e o grafite, cada um à sua maneira, continuam a moldar a paisagem urbana e a expressão cultural da cidade.
“Meu suporte é a parede da rua, é onde sou visto e sou lembrado”
O corre de Sant0 vai além do reconhecimento pessoal; ele aspira a deixar um legado, disseminando seu conhecimento e paixão pela arte de rua para as próximas gerações. “Não deixando de fazer a arte vandal, lógico! É isso que às vezes nos dá um gás a mais”. Para ele, a cidade é mais do que um lar; é um estúdio ao ar livre, uma galeria sem fim onde cada mural, cada tag, é uma assinatura da sua existência e dos seus.
“Meu marketing tá na rua, meu suporte é a parede da rua, é onde sou visto e sou lembrado”, Sant0 conclui. Em meio a desafios e conquistas, o artista continua a pintar, a ensinar e a sonhar, construindo seu legado nas cores vibrantes que vislumbram ou incomodam os olhares atentos às ruas de Belém, na esperança de um dia ser reconhecido não apenas como um artista do Norte, mas como uma referência nacional na arte que ele tanto ama.
Através das vozes dos artistas, como Sant0, podemos admirar esse fluxo todo que define o pixo e o grafite não apenas como formas de arte, mas como um fruto muito bonito do Hip-Hop para a cultura contemporânea urbana.
Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre A história e importância das mixtapes para o Rap nacional, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!