Uma análise sobre a influência retrô da música brasileira no mundo (e vice-versa)
A maneira singular de transportar o passado para criações do presente, é uma das minhas características favoritas da arte como um todo. E essa capacidade de assumir uma estética “retrô” de forma tão natural e se autorreferenciar, pra mim, é um dos motivos pelos quais a arte é tão encantadora, afinal de contas, esse é um de seus aspectos que atribui aos acordes, poemas, cenas ou movimentos de qualquer cultura ou período histórico, o potencial perene para transformar por completo a essência de qualquer pessoa, do artista ao espectador.
Ao mergulhar no mundo material e ganhar vida, as artes podem influenciar não apenas pessoas individualmente, como também obras e culturas inteiras de todos os quatro cantos do mundo – e com a música, isso não seria diferente…
…Espera.
Na verdade, é um pouco diferente sim, afinal, o potencial de influenciar outras obras – e pessoas, culturas etc. – atinge uma escala industrial com a música, o que muitas vezes torna a proporção dessa influência quase rápida demais para ser digerida.
O fenômeno da globalização, que materializou a dinâmica industrial do consumo musical, possibilitou que artistas de diferentes gêneros estabelecessem conexões intercontinentais de maneira ainda mais rápida, o que trouxe – e ainda traz – novos caminhos e possibilidades advindos das mais variadas inspirações e recortes históricos. E como é de conhecimento geral (ou pelo menos, deveria ser), a música produzida no Brasil é um prato cheio de influência para qualquer artista que se debruçar em seu vasto catálogo.
A favorita dos favoritos
Antes mesmo do Funk como conhecemos ganhar vida, se tornar uma trend e movimentar as pistas de dança do mundo inteiro, a música brasileira já tocava em muitos aparelhos de som no exterior. Durante o fim da década de 50 e por toda a década de 60, por exemplo, o Brasil viveu uma efervescência cultural que alavancou mundialmente ritmos como o Samba e a Bossa Nova, além de movimentos como a Tropicália. Esses anos carregam consigo aqueles que, talvez, sejam alguns dos primeiros registros de um grande impacto da música BR na indústria internacional.
Encontros famosos como os de Frank Sinatra e Tom Jobim, e João Gilberto e Stan Getz, são alguns dos reflexos diretos da potência artística nacional daquela época, e apesar de não representarem a diversidade da música brasileira em sua totalidade, foram importantes pilares que ajudaram a “validar” a influência e qualidade do que é feito aqui para o restante do mundo.
Contudo, ainda que sucessos como “Garota de Ipanema” e outras músicas semelhantes jamais tivessem existido, se antes restava alguma dúvida, hoje existe a certeza de que a produção musical brasileira, graças à sua originalidade rítmica e incontestável qualidade técnica, cedo ou tarde, seria “elevada” ao status de produto internacional.
Mesmo que a nossa música “quase” tenha dominado por completo o mainstream gringo durante aqueles anos, estar nos falantes e fones de estrangeiros não significava necessariamente ganhar um lugar fixo à mesa da hegemonia cultural Pop de língua inglesa. Para nós, o tornar-se popular no exterior era (e permanece sendo) algo relativamente limitado a determinados nichos. Entretanto, apesar de não ter alcançado um nível monstruoso de popularidade, com o tempo, o som do Brasil chegou a outro status: o de favorito dos favoritos lá de fora. E isso que ainda existe a tal da “barreira” linguística, hein?!
A chegada dos alquimistas
Muito do material musical produzido nas últimas duas décadas, seja em solo nacional ou na gringa, carrega consigo alguma parcela de tom retrô em sua concepção, e muito disso se deve ao que foi criado há 70/60 anos.
No meu entendimento, esse período da nossa história musical é revisitado por alguns motivos. O primeiro deles é a experimentação, que se expandia para além do Rock e buscava no passado referências valorosas para a construção de caminhos verdadeiramente inovadores. O segundo é a ascensão da música preta, que com seus ícones e a revitalização do ato de festejar, se tornou uma das demonstrações mais importantes do porquê a música nacional assumiu uma posição de protagonismo como parte das influências de artistas internacionais, levando a episódios como o fatídico ano de 1969 em que, apenas nos Estados Unidos, a música “Mas, que nada!” de Jorge Ben Jor, foi regravada 47 vezes.
Com o avanço dos anos 70, a demanda pela “brasilidade” no exterior aumentou ainda mais; o que já não era incomum, tornou-se rotineiro, e diversos artistas nacionais passaram a bater cartão em uma série de programas de rádio e televisão lá de fora. Com a ajuda de verdadeiros alquimistas da música brasileira, como Jorge Ben, Baden Powell, Gal Costa e Gilberto Gil, a chegada do som made in Brazil anunciou uma nova era, que propiciou a naturalização da nossa linguagem, trejeitos e identidade musical – que por sua vez, também refletia a identidade do país –, e introduziu todo um novo universo sonoro que viria a acostumar os ouvidos das gerações anteriores à diversidade cultural brasileira.
Mas atenção: se engana quem pensa que essa troca de influências culturais era uma via de mão única. Ao passo em que ídolos do Brasil arrancavam suspiros emocionados de inúmeras plateias lá fora, apesar de em menor escala, pouco a pouco, a frequência de grandes referências da música internacional que se apresentavam por aqui também aumentou, e com eventos como os bailes black ajudando na difusão de um tipo de som internacionalizado fora dos padrões Beattlemaníacos (leia-se: brancos), o Brasil pôde vivenciar a apresentação de ícones como James Brown, pela célebre Chic Show.
Em consonância com o restante do mundo, a ascensão da música preta no Brasil também começou durante um período de grande tensão social e política, o que aumentava ainda mais a necessidade de se imaginar um novo futuro para o povo por meio da paz, união, amor e diversão. E foi aí que, lá fora, surgiu um farol – ou melhor dizendo, aconteceu um bigbang em formato de festa, que favoreceu o surgimento da manifestação cultural mais relevante e socialmente revolucionária dos últimos 50 anos: o Hip-Hop.
Tecnologia velha, rimas high-tech
No Hip-Hop, existe um apreço muito grande pelo passado, independentemente do elemento que é posto em prática (característica que está se perdendo, mas isso é papo pra outro texto). Ser retrô, ou seja, utilizar algum recurso ou referência antiga na concepção/estrutura de alguma forma de expressão artística, faz parte do DNA da cultura e sempre fez, e esse traço genético pode ser observado logo de cara na técnica de samplear, que apesar de ser ainda mais antiga que o próprio Hip-Hop, foi desenvolvida, replicada e enormemente popularizada pela música Rap.
Por décadas os samples no Rap eram quase majoritariamente recortes de gêneros como o Funk, Jazz e Soul, e muito disso se mantém até hoje. Mas com a chegada dos avanços econômicos e tecnológicos das décadas de 80 e 90, a troca de referências se tornou ainda mais ampla, jovem e repleta de uma fome por novidades, o que levou alguns dos mais inovadores músicos e produtores internacionais a cruzarem continentes para chegar ao Brasil. Esses turismos culturais foram o ponto de partida para que surgissem as primeiras representações retrô do nosso som nas produções e estéticas musicais que se perpetuam até hoje no Rap gringo.
A pesquisa musical foi a grande responsável pelo aumento do uso de referências vindas do fundo do baú da música brasileira, e catapultou a influência retrô do nosso som no cenário internacional. Imagina que uva devia ser comprar vinis com verdadeiras obras de arte a preço de banana que, até então, eram desconhecidas e ignoradas pelo grande público?
Gosto muito de citar como exemplo o maestro Arthur Verocai, que apesar de quase ter caído no ostracismo e ver o seu (tardiamente) famoso disco de 1972 escanteado e largado às traças, décadas depois foi redescoberto num desses garimpos e teve sua obra sampleada em músicas de artistas como Ludacris, MF DOOM e Little Brother. Nada como o tempo, não é mesmo?
A percepção de que as coisas estavam mudando rápido demais para que todos pudessem acompanhar, motivou incansáveis pesquisas em busca da inovação musical ao longo dos últimos 30 anos – busca esta que encontrou nas produções de um passado já conhecido pelos brasileiros, as referências necessárias para dar um novo fôlego retrô ao mundo da música.
Dentro desse recorte de tempo, J Dilla, Madlib, Nujabes, Will.I.Am. e muuuuitos outros produtores provaram por a+b que, pesquisar e samplear foram práticas fundamentais para o estabelecimento da estética retrô enquanto forma de reinventar o passado dentro do presente, para construir possibilidades compreensíveis de futuro. Isso não se aplica apenas ao Rap, claro, mas o gênero foi um dos grandes responsáveis por revitalizar a presença da música brasileira nos falantes gringos, e isso ninguém pode negar.
A influência do retrô em solo nacional
Que o Samba, MPB, Bossa Nova e vários outros gêneros foram sampleados a torto e a direito por produtores lá fora, a gente já tá cansado de saber. Mas e aqui no Brasil, quais sons deram o tom ao retrô que permeia até hoje na cena musical do país?
Antes de citar nomes, é necessário trazer um breve contexto: com exceção de músicos já prestigiados no cenário nacional, que possuíam ace$$o a tecnologias, discos e produção de ponta, artistas do underground que não tinham verba precisavam dar os seus pulos, pegando inspirações aqui e ali em vinis velhos e baratos e esquecidos num canto empoeirado de alguma sebo – vivências compartilhadas pelos “fazedores” de Rap no Brasil e na gringa.
Jazz, Rock, Funk, Soul, música clássica… Assim como lá fora, muitíssimos sons internacionais de gêneros diversos foram utilizados como base para samples presentes tanto no Rap, quanto em outras vertentes da música brasileira. Mas essa influência retrô, apesar de intencionalmente invocada na maioria das vezes, hora ou outra se fazia presente de forma inconsciente, interligando inclusive obras de outros momentos da cena nacional e internacional.
No longínquo ano de 1969, uma banda belga de nome Wallace Collection lançou “Daydream”, música que se tornaria seu maior sucesso comercial e que possui uma trajetória de reutilização impressionante na história da música.
Aqui no Brasil, a base desse som foi desenvolvida e readaptada para servir como esqueleto para músicas de muitos grupos e artistas, como é o caso de Erasmo Carlos e Racionais MC’s:
Enquanto isso, lá fora, o mesmo som foi novamente utilizado como base para a criação de músicas de artistas que pertencem a gêneros completamente distintos, a exemplo da banda Portishead e do rapper Lupe Fiasco:
Percebe o tamanho do caminho que a referência de uma única obra (!!!) consegue percorrer? O mesmo som de Pop Rock lá de mil novecentos e guaraná com rolha foi reinventado para dar vida a músicas que passeavam pela MPB, Rap e Trip Hop, em diferentes momentos da história e por artistas que, em sua maioria, sequer trocaram meia dúzia de palavras.
O Miami influenciou o Funk moderno e a música clássica muitas vezes é inserida, em maior ou menor escala, em suas batidas; os famosos sons “flashbacks” vira e mexe ganham versões no melhor estilo Tecno-brega; a icônica “Rapper’s Delight”, do The Sugarhill Gang, ganhou até uma interpolação meio torta em uma das músicas mais famosas da história do Pop nacional…
E não para por aí: existem muuuitos outros exemplos mais recentes desse resgate de produções antigas em novas roupagens. Para além do mainstream, a cena do Rap underground tem vivenciado lançamentos importantes para a manutenção do retrô enquanto estética no país. Os trampos mais recentes dos ótimos FBC e Tássia Reis traduzem bem esse espírito, e ao meu ver, são trabalhos que dão aula de como se referenciar um gênero ou período de forma competente. Na minha cabeça, durante a produção desses trampos, os artistas tinham sempre a seguinte frase em mente:
Modernizar o passado é uma evolução musical
Vamos voltar ao presente. Hoje, o acesso aos recursos e referências explodiu no mundo todo, de forma que, muitas vezes, a quantidade de informação disponível é absurda (e simultaneamente limitada) o suficiente para desestimular o interesse pela pesquisa musical, que acaba se perdendo em meio a um oceano de bytes e playlists do momento.
Além da queda de interesse, o cenário musical foi canibalizado pela indústria, que se utilizou do monopólio financeiro para achatá-lo e influenciar de tal forma o mainstream, que impactou até mesmo o underground, meio que continua com criações autênticas, ousadas e repletas de nuances, mas que também viu parte significante da sede de inovação se perder para o algoritmo. É o processo de padronização e castração da música operando a todo vapor.
Mas quando os caminhos se confundem, é necessário voltar ao começo. E existe tempo pra isso, viu? Não é como se a música atual estivesse condenada ao abismo ou algo do tipo, nada disso. Neste contexto, a frase de Chico Science que dá nome ao tópico tem como objetivo jogar luz na urgência de voltar nossos olhos (e ouvidos) ao passado, com atenção aos detalhes e respeito às obras que foram criadas, para que a música do presente em si continue evoluindo, remando contra a maré do que a indústria empurra goela abaixo.
Cadê as notas que estavam aqui?
Não preciso delas!
Basta deixar tudo soando bem aos ouvidos.
Muita gente já se ligou que uma abordagem mais calcada no passado é um – senão “O” – caminho a ser tomado para a tal da evolução musical. Se por um lado a febre por músicas genéricas mantém seu reinado, por outro, o resgate historiográfico para o estudo e aplicação como referência no que há de novo está cada vez mais apurado, inventivo e repleto de novas possibilidades, tanto aqui, quanto lá fora.
Artistas de todo o mundo, do Rap ao Tecno-brega, estão aos poucos se aprofundando cada vez mais na estética retrô, aproveitando ao máximo as fontes que possibilitaram a existência de tudo aquilo que existe hoje. E sinceramente? Que continue assim! Que as raízes da música sejam cada vez mais discutidas, estudadas e utilizadas, ainda que por nichos específicos. A memória é o que mantém a música viva e contanto que seja respeitada, ela continuará a nos surpreender.
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