Uma conversa com o designer Lucas Rodrigues

"No rap, o livro pode – e deve – ser julgado pela capa, eu acredito".

AmarElo, O Líder em Movimento e Re: Ciclo, Lado A são produções musicais com uma boa recepção do público e da crítica. Mas esses álbuns possuem outra característica em comum: eles contaram com o trabalho do designer Lucas Rodrigues.

Lucas Rodrigues (Arquivo Pessoal)

Nascido e criado na Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, Lucas possui passagem por agências publicitárias e de branding como a Ana Couto, onde trabalha atualmente, e já atendeu marcas como Jaguar, Volkswagen, P&G, Unilever, Petrobras. O designer também trabalhou em projetos como a reestruturação da marca da CBF; o projeto gráfico do livro Reservado, de Alexandre Ribeiro; e mais recentemente na identidade do Festival Path 2020.

Já no Hip-hop, Lucas foi responsável pela materialização de conceitos e ideias de rappers como Emicida, Jé Santiago e BK, transformando versos em capas e estudos visuais. Seus trabalhos são marcados pela alta qualidade e por impactarem devido a organização e a harmonia visual.

Confira a entrevista concedida ao Kalamidade:

Trajetória e referências: capas clássicas

K: Em entrevista ao Per Raps, você comentou que o seu contato com o Rap veio na infância, morando na periferia de São Paulo, especificamente na Brasilândia (ZN), com clássicos como Racionais, Dexter e Ndee Naldinho. Mas quais foram as produções estéticas do Hip-hop que te marcaram nesse período e que te influenciaram a trabalhar nessa área?

L: Eu acho um pouco engraçado a minha relação com capas na verdade, porque meu pai, geralmente, comprava os CDs talvez descartava a capa em si e os guardava naquelas pastas de com envelopes transparentes, então o contato era mais próximo com a própria impressão no disco. Por isso Racionais chamou minha atenção logo de cara com aquele disco prateado com a impressão em preto de São Jorge.

Então meu contato real com as capas surgiu quando tive acesso à internet. E as produções que mais me marcaram foram, com certeza
, todas as capas do Racionais, a “Direto do Campo de Extermínio” do Facção Central, “Evolução é Uma Coisa” do RZO e a capa de “H. Aço” do DMN; o que todas essas capas têm em comum pra mim é que eu pude sentir uma forte conexão na história que elas contavam, isso antes mesmo de você ouvir o som, acho que isso foi o que mais me impressionou nesse movimento todo. Desde então eu tenho essa preocupação e cuidado com os trabalhos que faço na cena.

Processo criativo: como se constrói uma capa

K: O álbum de estreia do Jé Santiago, Re: ciclo, Lado A, é baseado em antigas capas de vinis e tem a reciclagem de momentos e sentimentos como conceito da obra. Como foi o processo de produção da identidade visual desse álbum e como é o processo de imersão para encontrar referências e ideias na construção dos seus trabalhos?

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Capa do álbum “ReCicloLado A“, 2017

Eu sempre acreditei e defendo a ideia de que não consigo desvincular a minha vida profissional da vida pessoal, acontece que, para nós designers/criadores, tudo que desenvolvemos têm forte relação com o nosso repertório, seja visual ou de vivência mesmo. E quando o Jé apareceu com o conceito do álbum e o que ele queria transmitir através dele, eu já estava numa pira pessoal de pesquisar capas de vinis justamente por carregarem um sentimento forte de “imortalidade” do artista e da obra, passa a sensação de que nascem como clássicos.

Eu queria muito levar a capa desse projeto para ser colocada ao lado dos vinis como da Alcione, do Milton Nascimento e do Djavan, este que já tinha uma conexão interessante com o Jé, principalmente pelo single “Flow Djavan”. O processo de construção bastante diferente pra mim, porque eu entendia muito bem o que ele queria contar nesse projeto, pois estávamos bem próximos. Outro ponto legal que ajudou a fortalecer essa ideia foi poder contar com as fotografias analógicas da Julia Razuk que reforçaram a ideia como um todo, como algo clássico, como algo especial.

K: Já em 2019, você participou da construção do conceito visual do álbum “AmarElo”, que recentemente ganhou o Grammy Latino, e um dos seus estudos sobre a linguagem visual desse trabalho foi baseado na desconstrução da bandeira do Brasil. De que forma os elementos nacionais inspiram seus trabalhos e como você se sentiu participando do AmarElo, um dos melhores projetos de 2020?

L: O meu amadurecimento de tentar trazer referências brasileiras para os meus trabalhos é algo bem recente e algo que quero me aprofundar cada vez mais. Porque temos uma cultura visual muito rica e variada, podendo trazer aprendizados desde experimentações vernaculares até o neoconcretismo. Isso faz com que eu me interesse muito em conhecer grandes nomes de artistas visuais brasileiros, visto que dependendo do seu processo de educação aqui, a simples aproximação desses nomes pode ser um privilégio.

Capa do álbum “AmarElo”, 2020

Então eu acredito que utilizar dessas referências em projetos atuais e mais próximos, de certa forma, de um grande público, possa instigar as pessoas a conhecer algo do artista também. Talvez seja uma forma de compartilhar conhecimento. Assim como o Emicida fez com Belchior em uma das principais faixas do álbum “AmarElo”, as pessoas se identificaram. Eu mesmo passei a ouvir mais Belchior depois que ouvi a prévia.

E participar desse projeto foi uma realização pessoal enorme, porque o Emicida representa algo muito forte, não só pra mim, mas pra uma par de gente mesmo e ele tá ligado. Ver tudo aquilo sendo construído de perto faz a gente crescer, faz a gente ter esperança. Esperança como um todo mesmo. É incrível, mesmo depois de um ano, ainda ver os lugares que esse projeto tem alcançado. Acho ainda que tem muito mais por vir como forma de reconhecimento dessa obra.

Da ideia à capa:

K: Esse ano você também trabalhou na identidade visual do álbum do BK, O Líder em Movimento, que carrega fortes temáticas ligadas à luta racial. Uma forte referência estética desse trabalho são os movimentos civis dos anos 60 nos Estados Unidos, que transmitiram por meio de jornais e cartazes o teor dos protestos vigentes na época. Qual a importância da estética para transmitir a mensagem de um álbum de Rap e como você chegou ao resultado do Líder em Movimento?


L: Acho que a música Rap é diferente de todas as outras, seja lovesong ou seja de mensagem (rs) ela sempre conta alguma história ali, sempre tem uma narrativa bem construída. E isso não pode se desprender do visual, tem que ter essa conexão. No rap, o livro pode – e deve – ser julgado pela capa, eu acredito. Ainda mais que na época que vivemos da indústria musical, onde tudo soa muito superficial, se você constrói algo com mais camadas que, consequentemente, desperte curiosidade nas pessoas sobre o que está por trás daquela capa, o projeto só tem a ganhar com isso e vira algo consistente.

Capa do álbum “O Líder em Movimento”, 2020

Sobre o processo dessa identidade, a ideia em si já estava meio estruturada pelo próprio BK, pelo El Lif e pelo João Victor Medeiros, o fotógrafo que me convidou para participar desse projeto. As fotografias já eram inspiradas nos registros de Malcom X na Meca e carregavam esse conceito por si só. Também já tinha um princípio de um projeto mais maduro do artista, que trouxesse algo que marcasse esse momento.

Decidi então trazer a ideia de algo que ficasse marcado como um registro até mesmo da época em questão, visto que o próprio Malcom X aparecia em fotografias segurando um jornal em mãos apontando para uma manchete. Com a ideia de somar no projeto e torná-lo algo próprio, convidei o designer Marcelo Lima para trabalhar no desenho das letras que compõem o nome do álbum e do BK. Além disso, alinhado até mesmo com o ideograma Sankofa, que era uma das premissas também, pude sugerir que o artista utilizasse o seu nome de batismo Abebe Bikila nesse projeto para se aproximar dessa filosofia. A fim também de trazer outro forte ícone para esse projeto e que fizesse sentido com a narrativa do líder da história, sintetizei na linguagem o último discurso de Martin Luther King Jr. que falava sobre chegar ao topo da montanha para enxergar algo para o seu povo; alinhado à isso, para representar a montanha e trajetória do líder, trouxe um elemento abstrato e geométrico super comum nas obras de Rubem Valentim, artista visual da Bahia que tinha uma forte conexão sobre a relação de arte e o povo.”

Um pouco mais sobre música e arte:

K: Para além do Rap, você também produziu outros trabalhos, como a arte da matéria Criminalização do Funk para o site da Perifa no Toque. Quais são os outros estilos musicais que te inspiram e com quais artistas você ainda deseja trabalhar?

Arte da matéria “Criminalização do Funk”


L: Eu gosto muito de música popular brasileira, isso eu falo de Funk, Pagode, Samba e Pagodão. Quando não estou consumindo Rap ou R&B, pode ter certeza que estou ouvindo algum desses estilos para trabalhar hahaha

Alguns desses lugares, como uma construção visual, parece que já são pré-estabelecidos. Sinto que já existe uma linguagem que é comum na “categoria” e não consigo ver, como consumidor, uma outra forma de trabalhar nisso ainda. Mas, como profissional, sinto também que é possível trabalhar de uma outra forma e criar diferenciação/curiosidade.

Desses que citei, tenho muita vontade de trabalhar com Samba, sinto que tem uma liberdade maior para criar e não seguir estereótipos para poder se comunicar, sobretudo nas capas. Talvez o meu maior sonho seja fazer um trabalho com o Jorge Aragão, o qual sou um mega fã e ficaria extremamente realizado na indústria musical.

Além desses estilos, queria deixar registrado aqui que seria um sonho fazer algum projeto gráfico para o Mano Brown ou um novo álbum dos Racionais, não custa sonhar.

K: Para finalizar, queria de indicações de designers, fotógrafos, diretores de arte que atuam em produções musicais, em especial no Hip-hop. 

L: Adriel Nunes, tem um trabalho super maduro e experimental. Consegue dialogar com maestria com diversos públicos com diversas linguagens. Trabalhou no “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” de Emicida.

L: Karú Martins, atua na cena com um estilo bastante lúcido e enigmático ao mesmo tempo. Provavelmente você já foi num show do Kamau e a viu correndo pra fazer os melhores registros. Recentemente tem trabalhado bastante na produção de clipes, sobretudo de minas.

Marcelo Lima, trabalhou desde o começo ali da carreira do Emicida e Rashid. Foi e é uma inspiração pra mim, ainda mais sendo cria do mesmo bairro, exemplo de possibilidade pra mim.

João Victor de Medeiros, fotógrafo foda que atua junto à Pirâmide Perdida. Tem uma sensibilidade absurda para esse negócio. Também tem um trabalho impecável com fotojornalismo.

K: É muito importante ver além da capa e entender um pouco do processo de criação dessas artes que se eternizam no nosso imaginário. Valeu, Lucas!

O projeto do Kalamidade é este: apresentar os bastidores. E, por falar nisso, conversamos recentemente com Tulio Cipó sobre cinema e música, vale muito a leitura.


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Site: Lucas Rodrigues

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