É inegável que a cultura Hip-Hop nasceu, se desenvolveu e se manifesta na rua, certo? Partindo dos Sound System’s na ilha do Caribe, passando pelos Block Party no South Bronx, as rodas de break na São Bento e as batalhas de rima em cada canto de SP podemos ver a relação entre Hip-Hop e rua na prática. Mas em todos esses casos, estamos falando da rua para além da simbologia e lidando com ela de forma concreta. Asfalto, calçada, poste de luz, marquise, são elementos em comum dos rolês citados acima.
Da mesma forma, espaços como casas de shows, bares, galerias, cafés, lojas de discos serviram de morada abrindo suas portas para que o Hip-Hop acontecesse e ainda hoje são pilares para que a mesma cultura se mantenha viva.
Agora imagine um lugar que é tudo isso e ainda atua como escola de formação, selo independente, gravadora e lar de um dos maiores encontros de produtores e beatmakers do Brasil! No De Peão de hoje conversamos com Rafa Jazz e DJ Niggas sobre a Casa Brasilis e todo seu legado na cena do Hip-Hop nacional.
Pega o RG, uma jaqueta e vamos dar um peão!
Nascida em 2014, a Casa Brasilis é um encontro perfeito de tudo que o Hip-Hop tem de bom para oferecer numa noite de giro por SP. Bar & Café, espaço cultural, casa de eventos, espaço de troca de conhecimentos sobre música e loja de vinil, a Casa é um empreendimento resultante do sonho da paulista Rafa Jazz e do mineiro DJ Niggas.
Rafa Jazz é pesquisadora musical desde 2006, DJ, Beatmaker e teve seu primeiro contato com o Hip-Hop na adolescência ouvindo Racionais MCs, e outros artistas.
Quando eu conheci o J Dilla e o Madilib que minha cabeça fez Bummmm! (risos). Pq eu achava os beats muito lokos… Logo de cara eu conheci os trabalhos instrumentais deles e achei muito loko,
diz Rafa Jazz.
Dali em diante ela entrou de vez para o mundo instrumental que o Rap tinha para oferecer. DJ Niggas encontra o Hip-Hop nos anos 80 vendo Ice-T, Run-D.M.C., Beastie Boys pela TV em filmes e programas. A faixa “Colors” bateu forte no menino do interior de Minas e o levou para o caminho da discotecagem. Desde os 15 anos trampando como DJ de banda, Niggas tem seu primeiro contato com produção nos anos 90 através do FL Studio no computador do guitarrista da banda que ele participava.
Eu era aficionado em computador né mano. E sempre que a gente ia compor a gente ia na casa de um dos caras… Ligava o computador e sempre era Reason 1 Fruit Loops 2,
contou DJ Niggas.
Ali nasce uma paixão pela produção musical somada ao amor pelo Hip-Hop. Em 2004 Niggas chega em São Paulo. Em 2008 deixa a banda e se joga no mundo da produção de cabeça. Juntos dão início a uma caminhada em busca de um sonho: ter um espaço cultural voltado para a música Rap.
A coisa não foi tão literal assim, como a frase anterior faz parecer… E longe de mim querer romantizar a história da Casa. A proposta aqui é mostrar como dois artistas, com um sonho compartilhado, conseguiram unir ideias, força, sangue, suor e dar vida a um polo para a manifestação dessa cultura. Como primeiro passo dessa viagem, precisamos voltar ao passado. Voltar até 2011, num apartamento no centro que cheirava a vinil velho.
Casa Brasilis – Trajetória
O início é o Groove. Nosso ponto de partida é a Brasilis Grooves. Fundado em 2011, o selo independente, idealizado por Niggas, relançava obras raras da música brasileira e lançava trabalhos de artistas que só haviam saindo em CD ou álbum digital em formato vinil. Com a volta do vinil, a procura da galera pelos compactos da Brasilis era gigante.
A gente tinha o site né… que vendia os discos. Aí a pessoa fala: “Pô posso retirar o disco ai com você? Tô vendo que você tá na Cardoso de Almeida no centro!”, aí eu falei: “Pode, pode vir retirar!”, aí o cara chegava pra retirar o disco no apartamento onde a gente morava e falava: “Mano, eu vi que no site tem mais uns 50 discos! Eu não posso subir aí pra dar uma olhada agora?!”. Na época a gente morava num apartamento que era um quadradão! Não dava pra receber gente pra ver disco lá.
Toda oferta pede uma demanda. Percebendo que a galera queria ir até a Brasilis Grooves ver mais discos e que o apartamento no centro não era o lugar, Niggas, que era DJ residente da Sarajevo na época, e Rafa, que trampava com design na FNAC mas já buscava uma mudança, decidem buscar uma lugar físico para a Brasilis Groove. Eis que em 2014, alugam um espaço físico e nasce a Casa Brasilis, loja de discos/café/espaço para eventos localizada no Sumaré, Zona Oeste de São Paulo.
Com a Casa aberta para receber o público para ver os discos, vender umas brejas, uns sucos, rolar uns eventos da cultura do DJ, o casal passa de donos de um selo de disco para gerentes de um espaço cultural que começa a ganhar nome na cena Rap de SP e passa a ser muito frequentada.
Para abrir a primeira casa, Rafa e Niggas tiveram que enfrentar toda burocracia para conseguir um empréstimo por meio do MEI (Microempreendedor Individual) e assim fazer uma reforma buscando melhorar a cara da casa.
A primeira Casa Brasilis, tinha uma carinha de casa de bairro mesmo. A gente deu uma transformada ali! Abrimos parede, fizemos várias coisas pra tentar tirar aquele ar de Casa e abrir mais o espaço, poder usar mais o espaço como loja […] Ser uma loja de garagem aberta pra rua que qualquer pessoa possa entrar,
diz Rafa Jazz.
Após abrir, o trabalho era mantê-la aberta e autossustentável. Os primeiros eventos são totalmente voltados para pagar aluguel, as contas, investimentos, etc. Com o tempo, financeiramente as coisas vão entrando nos trilhos. Por outro lado, a relação entre a casa de eventos e a vizinhança não era nada simples. Reclamações de som alto, conversa até tarde da noite e barulho eram recorrentes. Essa relação desgastada com o entorno fez com que a Casa Brasilis mudasse de endereço pela primeira vez. Do Sumaré o espaço mudou para a Rua Francisco Leitão, em Pinheiros.
Com uma vizinhança bem mais elitista, surgiram outros tipos de problemas. Mais que barulho, mais que som alto, o que incomodava a alta sociedade de Pinheiros era a presença do Hip-Hop naquele espaço “nobre”. Ameaças de: “Se eu ouvir um barulho eu vou mandar o psiu”, até a visita de um agente do PSIU: “Eu sou desembargador né… então melhor não termos problema…”, levaram ao fim das atividades na região de Pinheiros. A Casa permanece aberta apenas oito meses em Pinheiros, fechando em 2017. Pela primeira vez a Casa Brasilis se viu sem um espaço físico.
Durante esse período, o Boteco Prato do Dia recebeu duas edições do evento. Logo após, a Matilha Cultural passou a receber os eventos. A localização central da Matilha, o formato do espaço da Matilha Cultural, o cuidado da produção da Matilha com o evento, foram pontos positivos para o sucesso da parceria Casa Brasilis x Matilha Cultural. Lá aconteceram mais de 40 edições da Beat Brasilis.
Em 2018 eles inauguram o terceiro endereço da Casa Brasilis, agora na Pompéia, buscando reviver o formato da primeira casa. Os eventos, o bar, a Beat Brasilis, tudo voltando aos poucos.
Até que em 2020 um vírus do c#@r0#&* chegou nesse país e né… Hoje a Casa mantém suas atividades por meio da Beat Brasilis online pela twitch e aguarda ansiosa a vacina no braço de geral para voltar com as aglomerações.
Beats no vinil quadrado
Em paralelo à Casa, Niggas desenvolveu uma parceria com Arthur Joly, técnico de sintetizadores de áudio e masterização, fundando em 2014 a Vynil Lab, selo independente que prensava e lançava disco de vinil em formato Lo-Fi. Quadrados, por conta do corte feito com agulha de metal, artes no verso do disco, qualidade de áudio inferior às dos Hi-Fi, os discos da Vinyl Lab tinham uma identidade própria e marcaram a história da Casa Brasilis e da cena de produção da época.
O marco foi quando DJ Niggas, buscando entender melhor as máquinas de prensa, pega alguns beats da edição #04 da Beat Brasilis e prensa em discos Lo-Fi. Niggas leva esse produto para edição #05 da Beat Brasilis e mostra para os beatmakers os beats em formato vinil com a textura e estética Lo-Fi.
Ao ouvir seus próprios beats num vinil, os beatmakers enlouqueceram! Com aquela reação, o crescimento da Beat Brasilis e a porta aberta para a produção de disco Lo-Fi, de forma natural nasce o Beat Brasilis Rec, selo independente derivado dos encontros da Beat Brasilis focado em lançar beat tapes ou beat clipes dos beatmakers participantes do encontro. Com a Vinyl dentro da Casa Brasilis, foram assinados mais de 200 projetos.
Em 2017 a galera da Brasilis decide extinguir o quadradinho como produto vendável. Por ser feito dessa forma mais barata, de corte na agulha de metal, nem sempre ele funcionava em todos os lugares, se tornando apenas um vinil art. Outro fator foi a revenda superfaturada dos discos. Assim, eles decidiram seguir somente com a produção do formato Hi-Fi, garantindo a alta qualidade do áudio e quebrando essa revenda. O disco quadrado, as artes no verso, os beats dentro do vinil Lo-Fi, até hoje são lembrados pelos mais românticos e saudosistas.
Beat Brasilis
Quando a gente abriu a Casa a gente queria ser muita coisa né. A gente abriu como um espaço cultural, como um café, como um espaço para eventos de DJ, espaço para cursos, pra workshop. A gente era um espaço cultural em geral né. Com um mês de Casa, fazer a Beat Brasilis enraizou a cultura do beatmaker na Casa Brasilis. Era a realização de um sonho, saca?
DJ Niggas
Na visão de muitos, essa é a joia da coroa da Casa Brasilis! Beat Brasilis é um encontro semanal de beatmakers, DJs, músicos, MCs que rola (rolava antes da pandemia) toda quarta das 16h às 21h. A estrutura do rolê é a seguinte: O primeiro a chegar na Casa escolhe um disco e todo mundo tem que produzir algo a partir dele. No final do rolê a galera apresenta o que produziu.
A ideia surge numa das edições do Vinil de Quinta, evento de discotecagem do DJ Marco e do DJ Niggas que rolava na Casa, onde aconteceu uma apresentação de live beats do Cabes. Marco e Niggas repararam que o Cabes manipulava a MPC diferente deles. E entre eles mesmos, Niggas e Marco, tinham informações não compartilhadas sobre o uso da máquina. Eles decidiram se encontrar na terça e bater papo sobre o que cada um sabia e como usavam as máquinas. Niggas chamou o Formiga e aconteceu a primeira edição da Beat Brasilis (ainda sem nome). Dali já saiu o barulho pra fazer um segundo encontro.
O papo desse segundo encontro foi tão bom, teve tanta troca de informação, a galera ficou tão empolgada que no fim geral já tava: “Mano! Tem que rolar outra semana que vem!”, “Vamo dar um nome!”, “Que dia você pode?”. Ficou combinado o encontro semanal às terças para troca de conhecimentos sobre as máquinas. O rolê foi batizado de Beat Brasilis.
Quando Marco divulgou nas suas redes, começou a colar mais uma galera cheia de dúvidas e querendo aprender com aquela vivência. O rolê foi ganhando força na rede, com as fotos da galera, os vídeos de 15 segundos no Instagram, que quando eles se deram conta tinha nascido um dos maiores pontos de encontro para se fomentar o conhecimento em torno das MPCs.
Outro nome importante para a divulgação da Beat Brasilis foi Tiago Frugoli, que começou a colar nas sessões e divulgar pra uma galera. Frugoli morava na mesma rua que a Casa Brasilis.
Com o tempo, o rolê começou a ampliar a visão para a produção de beats como um todo (feita nas machines ou feitas nas DAWs nos computadores) e abrigou uma outra galera que via ali uma forma de dar o primeiro passo no mundo da produção.
De 2014 pra cá, podemos afirmar, sem medo nenhum, que já passaram mais de 1.000 produtores pelo evento e pelo processo que o mesmo propõe. Fazer um beat se tornou algo coletivo depois da Beat Brasilis. Compartilhar conhecimento se tornou um lema do rolê.
É fundamental observar o quão Hip-Hop a Beat Brasilis é! Divulgar a informação naquele processo de “Mano, você salva aqui ó…”, “Tenta fazer assim… se liga!”, “Esse botão X faz a função Y!”, abre o caminho que para muitos era apenas um sonho distante, algo que vai de encontro com os ensinamentos de Bambaataa há 40 anos atrás na Universal Zulu Nation. Hip-Hop é troca, sem necessariamente esperar nada do outro. A vitória dos manos é a minha vitória. Cada beat que nasceu mantém viva a cultura que salva vidas desde sempre.
Beat Brasilis Orquestra
Em meio às milhões de ações da Casa Brasilis, uma ganhou destaque pelo seu perfil inovador nunca antes visto. Uma Orquestra formada por beatmakers tocando temas de maestros nacionais!
Rafa conta que a ideia da Brasilis Orquestra era antiga. Mas dar o start não era algo simples. O trampo de selecionar os temas, formatar a coisa toda, marcar ensaio, a falta de um motivo para justificar todo esse trampo, fizeram o plano ir para a gaveta.
Foi no contato da produção do CUCA (Cultura Urbana Conexões Artísticas), que pediam: “A coisa mais maluca que vocês tem aí!” , que Niggas e Rafa pensaram: “A Orquestra! É agora ou nunca!”.
A SMC (Secretaria Municipal de Cultura) topou a ideia e eles tiveram dois meses e meio para levantar todo o evento. Os dois cuidaram da curadoria dos temas de maestros nacionais importantes a serem tocados como Rogério Duprat, Dom Salvador, e Niggas cuida da produção musical junto a Joly (o mesmo da da Vinyl Lab) e Habacuque rearranjando os temas para serem sampleados e tocados nas máquinas. Eles organizaram o time, organizaram os ensaios e no dia 20 de Outubro de 2018 rolou a primeira apresentação da Beat Brasilis Orquestra na Praça das Artes, centro de SP.
Pausa para uma curiosidade. Para fazer os beatmakers tocarem juntos ao vivo, eles fizeram uso de planilhas do Excel como sua partitura. Usando as linhas e colunas do Excel, foi possível os músicos se encontrarem nos temas e saber onde entrar, em qual parte eles estavam, etc. Pensando que a linha era o instrumento a coluna era a posição que a galera estava na música, os compassos foram divididos todos em 8 e o DJ Niggas como maestro à frente da orquestra sendo o BPM que a galera devia seguir, a coisa fluiu. O método criado com as linhas e colunas do Excel se assemelhava com o layout do Ableton Live.
Após a primeira apresentação rolou uma apresentação no Adidas Skate Copa Classic, uma outra no encerramento do ano da galeria Olido com times reduzidos e em 2020, a convite do Xis, a orquestra se apresenta no palco do Theatro Municipal com participação da Stefanie, Tássia Reis e Rincon Sapiência abrindo o mês do Hip-Hop daquele ano.
Uma banca de beatmakers levando a cultura Hip-Hop para um dos palcos mais elitizados de São Paulo, levando o público do Hip-Hop para ocupar a plateia daquele palco, levando a cultura do beatmaker, do vinil, pensando também que muitos ali (tanto artistas como plateia) nunca tinha entrado naquele lugar é algo muito potente e é mais uma prova do tamanho do Hip-Hop como cultura. Ter a possibilidade de quebrar padrões e paradigmas com sua arte é algo que deve ser exaltado por anos e anos. E esse feito também vai pra conta da Casa Brasilis.
Falar da Casa Brasilis é falar de uma caminhada longa, de um legado que merece muito respeito e admiração e que segue fazendo história. Se você é daquelas pessoas que curte tomar um drink e ouvir um bom som, ou colar num evento de Rap brabo, ou garimpar uns vinis pra sua coleção, a casa Brasilis é o lugar!
Vida Longa à Casa Brasilis! Disco, Sample e Beats gerando histórias e conhecimento.