Como pensar nos próximos 50 anos de Hip-Hop revisitando as raízes da música Rap fortalecidas pelo Reggae e a cultura Rastafari
O movimento Hip-Hop pode não ter sido algo planejado, mas é a consequência de uma revolução social e necessidade de sobrevivência. Esse instinto pode ser observado nas bases culturais e sociais de estilos musicais originários dos povos africanos que foram traficados de seus territórios e forçados a iniciar uma nova vida. O canto, o lamento, o batuque usados para sobreviver a condições cruéis e desumanas foi a força para que hoje possamos ter o total direito de estudar a história e com ela aprender a melhorar para o futuro.
Desde o início de 2013 até 2023 já foram produzidos diversos conteúdos, pesquisas, livros, registros de eventos e shows, documentários, séries, podcasts e diversos outros materiais que explicam e ensinam sobre o que é Hip-Hop. Com a evolução tecnológica, amplitude das redes sociais e cada vez mais micro bolhas produzem cada vez mais conteúdos. Muitas vezes tratando as referências do passado como algo tão tão distante.
Pensando nos passados 50 anos de Hip-Hop, houve nitidamente uma expansão dos elementos (dj, mc, breaking e grafite) e uma maior receptividade e identificação nos tempos atuais. O Rap foi o que mais ganhou destaque e leva até o nome do movimento inteiro junto com ele em certas premiações. Desenvolveu os chamados subgêneros e foi aceito em outras camadas sociais, as mesmas que antes censuravam a música Rap.
Em meio a tantas polêmicas de quem realmente faz Rap ou se o Rap está vivo ou morto, convido a pensar em algumas perguntas fundamentais para o desenvolvimento desse pensamento: a censura sumiu ou se manifesta de outra forma? Quais são as formas de opressão atual? O quanto evoluímos e o quanto temos que melhorar como seres humanos? O que é a arte? Onde estão nossas raízes?
O que é a arte se não uma forma de questionar a realidade atual ou até mesmo confrontar uma corrente para ser realmente “disruptivo”?. Para fazer essa reflexão será importante entender as bases que originaram o estilo musical e introduzir a ideia de comunidade trazendo o Reggae Roots como nossa maior referência. Como um estilo que se originou de uma religião nos ensina a olhar para o nosso povo.
O nascimento do Reggae e seus fundamentos
Registros apontam que o surgimento do Reggae, derivado do Ska e Rocksteady, foi no final da década de 1960 na Jamaica e as misturas musicais de tambores africanos. O Rhythm and Blues, originou o Ska e foi abraçado pelo povo, de acordo com a pesquisa “Reggae, identidade cultural e atratividade turística de São Luís do Maranhão“, de Talita Lima Penha (2003).
Na época as músicas não tocavam em rádios, mas de acordo com a pesquisa, as bandas de Ska eram responsáveis por animar os navios de turistas que visitavam a Jamaica e isso contribuiu para a expansão fora do território. Os nomes que definitivamente levaram a grande mensagem do Reggae para além das fronteiras, não apenas físicas mas ideológicas, foram Bob Marley, Jimmy Cliff e Peter Tosh.
O que fez o Reggae ser tão popular foi a grande identificação que era cantada nas letras das músicas, trazendo mensagens de descontentamento em relação ao tratamento dado à população mais pobre, em sua maioria descendentes de escravizados. E como isso foi uma realidade que afetou todos os países que foram antes colônias, foi uma grande explosão.
Conhecido por Reggae Raíz ou Reggae Roots o estilo foi especificamente destinado a tratar de temas como desemprego, falta de moradia e todos os problemas que eram enfrentados em países pós-escravidão. Essas informações podem ser encontradas na pesquisa “O Reggae, da Jamaica ao Maranhão: Presença e Evolução“.
Essa base que é a rebeldia, a mensagem de mudança e denúncia são fundamentos importantes da cultura, que misturados à crença Rastafari, criaram um potente discurso que salvou vidas, transformou e inovou nesses últimos 50 anos.
Mas o que é a cultura Rastafari?
De uma origem messiânica e religiosa, o termo Rastafari veio do nome do coroado imperador da Etiópia (1930 – 1974) Haile Selassie, nascido Tafari Makonnen e que após ter sido coroado como príncipe, leva o prefixo “ras” na frente do nome. E originou o Ras Tafari, que uniu religião com ideologias libertárias e movimentos nacionalistas que valorizavam a África como uma terra sagrada onde os negros poderiam voltar aos seus lares, como o pan-africanismo que inspirou mais tarde Malcom X.
Elemento crucial na história da Etiópia e da África no século XX, no ano de 1936 o imperador discursou sobre as teorias racistas levantadas pelos então representantes da Liga das Nações Unidas, que culminou até a Segunda Guerra Mundial.
Enquanto a filosofia que declara uma raça superior e outra inferior não for finalmente e permanentemente desacreditada e abandonada; enquanto não deixarem de existir cidadãos de primeira e segunda categoria de qualquer nação; enquanto a cor da pele de uma pessoa não for mais importante que a cor dos seus olhos; enquanto não forem garantidos a todos por igual os direitos humanos básicos, sem olhar as raças, até esse dia, os sonhos de paz duradoura, cidadania mundial e governo de uma moral internacional irão continuar a ser uma ilusão fugaz, a ser perseguida mas nunca alcançada. – Selassie, Discurso na Liga das Nações, 1936.
Esse discurso foi transformado em música por Bob Marley na música “War” do disco “Rastaman Vibration” (1976).
A cultura jamaicana teve na figura de Selassie uma esperança de libertação. Era algo profético, pois o consideravam como um Messias Negro para libertar seu povo. Essa mensagem foi espalhada de diversas formas e a música foi uma das mais potentes. Para seus seguidores, ele era o próprio Jah reencarnado.
Do Rap ao Reggae: como será o futuro?
A força da cultura Rastafari e o movimento da Reggae Music foram as grandes bases do Rap. Derivado das evoluções tecnológicas proporcionadas nos anos 1970 nos Estados Unidos, a dupla de imigrantes jamaicanos, Kool Herc e Grandmaster Flash, fizeram tanto bom uso do que a época tinha a oferecer, unindo aos seus conhecimentos e cultura de festa e lazer, que ferveu em todos os ghettos.
Da mesma forma que a música tomou imigrantes e negros americanos ela viajou para além das fronteiras dos EUA e chegou em outras periferias, mas com a mesma mensagem em comum: denúcia, empoderamento e cultura.
Na década de 90, a figura negra messiânica que lutou pela liberdade do seu povo e levou essa mensagem de libertação foi Tupac Amaru Shakur. Aqui no Brasil, podemos olhar para o Sabotage como um messias que teve uma passagem rápida pela Terra e também foi uma grande figura emblemática que mantinha os mesmos princípios dos grandes precursores.
No início dos anos 1990, o Reggae estava se consolidando no Brasil e já havia ganhado o mundo. Conforme as décadas foram passando, a tecnologia e acessos foram melhorando e o mundo se tornou mais globalizado e os movimentos ganharam destaques diferentes na sociedade. Vivemos uma grande ascensão do Rap e da música urbana em si, mas e o “roots”? Como evoluir sem deixar as raízes?
O Reggae sempre andou muito junto com o Rap, pois ambos os estilos possuem a mesma origem e o mesmo DNA. Olhar para as nossas referências do passado é entender como era o pensamento antes de uma explosão tecnológica, com muita informação e pouca qualidade. Era estar sempre atento ao que acontecia no mundo e querer deixar um legado positivo para a futura geração. Hoje estamos colhendo muito esse fruto, mas o que estamos plantando?
Pensar em um movimento próspero por mais 50 anos é mais que necessário. Ainda estamos evoluindo como sociedade e muitos erros do passado ainda se repetem. No Brasil temos vivido problemas semelhantes ao início da criação do Reggae, com pobreza extrema ainda. Vivemos uma repressão policial tão intensa quanto àquela do pós-ditadura e início do Rap nacional. Grupos neonazistas cresceram 270% até 2019 no país. Vivemos entre quedas significativas de índices de pobreza e melhora, se tem falado bastante sobre mudanças climáticas como racismo ambiental.
Tudo isso mostra o quanto socialmente ainda classes sociais com pouco poder aquisitivo são mais afetadas com crises econômicas e má gestão, ainda sendo oprimidas. O nascimento, tanto do Rap quanto do Reggae, veio para confrontar essa pobreza e denunciar, mas agora vivemos calados atrás de telas. Como podemos pensar nos próximos anos?
É necessário um olhar de volta ao passado. Quando Chico Science disse: “modernizar o passado é uma evolução musical”, ele fala justamente que existe tempo para fazer essa autocrítica, voltar às bases.
Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre o Rap gospel e a inserção do Hip-Hop dentro das igrejas, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!
Texto por: Mariana Paulino