DJ Matt-D: Homenagem aos Relíquias e como o funk conta sua história

O set de Funk que é uma contundente expressão historiográfica

Funk e memória afetiva

Lembro de estar à noite em algum lugar aqui na minha cidade natal, no interior de SP, e chegar aos meus ouvidos um som tocando ao fundo… uma música que claramente era funk, mas, tinha umas paradas diferente dos funks que já ouvia há tempos.

Num primeiro momento, achei que fosse a batida que se destoava, pois, é uma batida de trap, mas, apesar de muito bem feita, não era exatamente isso. Tinha alguma coisa diferente, um efeito de magnetismo que me atraía na música. E, quando percebi, pelo ritmo, pela melodia e pela forma que as palavras eram cantadas, havia um sentimento de já conhecer a música mesmo sem tê-la ouvido antes. Uma nostalgia me levava para um passado em torno de 2010 e anos adjacentes, trazendo a tona músicas daquela época que variavam entre funks consagrados como “Plaquê de 100” de MC Guimê e Raps e R&Bs que eram torrencialmente populares na época, como “Smack That” do Akon.

Que música é essa?

Fiquei com essa música na cabeça, cheguei em casa e descobri o nome, era “Homenagem aos relíquias 2.0”. Foi idealizada pelo DJ Matt-D e lançada pela Satélite Funk, composta pelos MCs Leozinho da ZS, Vinny, Menor, Júlio D.E.R., Lemos, Diouro, Livinho e a fabulosa Dricka.

E foi aí que fiquei fascinado pois para além de ser um set incrível, impressionava quantas camadas haviam ali. E, sobretudo, o quanto aquela música me falava sobre a história do Funk, um gênero musical nascido na marginalidade da periferia, feito majoritariamente por pessoas pobres e que, definitivamente hoje, faz parte do âmago da cultura brasileira. No entanto, não era só o fato de falar “sobre” a história do funk mas a forma de contá-la. Quando uma música está tocando copiosamente pelas quebradas e ruas do interior é que bagulho estourou mesmo.

Funk pelo Funk

Matt-D, numa pequena entrevista para o maior portal de funk do Brasil, Kondzilla, conta rapidamente sobre como foi o processo de fazer o primeiro set de “Homenagem aos Relíquias”. Nessa entrevista uma parte me chamou a atenção, justamente quando ele conta o fato de chegar no estúdio e encontrar Vinny MC chorando por aquilo que estavam produzindo.

Essa pequena passagem confirma o quão carregada de afetos e história é a música. Pois, como o próprio título do set diz, trata-se de uma homenagem para as tais relíquias. É uma prestação de respeito à memória daqueles que estruturaram e consolidaram o Funk. Gênero que ainda hoje constantemente sofre ataques e descredibilização pela camada conservadora, higienista, elitista e branca do Brasil.

Relíquias do Funk – as origens

O primeiro set de “Homenagem aos Relíquias” foi composto por Menor MC, MC Vinny, MC Julio D.E.R. e MC Leozinho da ZS (que voltam no set 2.0 como já dito anteriormente) e, ao meu ver, é o mais purista Ele traz referências quase que somente a Funks e Funkeiros de uma década atrás. É como se mostrasse parte do alicerce do gênero, como MC Lukinhas JK, MC Zói de Gato, MC Tartaruga, MCs Samuca e Nego e, claro, a MC Daleste. Daleste era um dos mais promissores MCs da época, conquistando o Brasil e que em em 2013 foi baleado em cima do palco, num show.

Relíquias do Funk 2.0 – crescimento e consolidação

Num processo de crescimento, “Homenagem aos relíquias 2.0”, agora traz consigo mais referências do Funk, acompanhando a linha histórica, mesclando com antigos e novos. Aparecem nomes como MC Keke, MC Felipe Boladão, MC Tikão, MC Neguinho da Kaxeta, Mr. Catra (…) mas, expande a explicitação de como é constituído o gênero, agora, trazendo muitas músicas de Pop Rap”, R&B e próprio Gangsta Rap que tomavam o Brasil uma década atrás como T-Pain, Dr. Dre, Tupac, Ja Rule, 50 Cent, XXXTentacion, Sabotage e até Black Eyed Peas.

Relíquias do Funk – Mulheres que fizeram história

Já em “Homenagem aos Relíquias 3.0”, num movimento de atualização e, de novo, engrandecimento, o set é composto só e apenas por mulheres do funk, Belle Keffer, Carol Pécora, Dani Russo, Guetta Finelly, Laryssa Maravilha, Lua Lopes, MC Lynne, MC Marcela GC, Naíse e Thammy Maravilha. Nessa música, em sua maioria, as artistas voltam a focar-se na referenciação ao Funk. No entanto, dando ênfase às mulheres que construíram e constroem a história do Funk, como MC Beyoncé (Ludmilla), Mc Marcelly, Perla, MC Pocahontas, Valesca Popozuda, MC Carol e, claro, a gigante Tati Quebra Barraco (…), mas, ainda sim tendo espaço para mulheres fora do Funk, tanto atuais como mais antigas, como Rita Lee, Marília Mendonça, Rihanna, Iza, Alcione e até Whitney Houston.

Escrevivências: Funk e Hip-hop

Depois de explicitado a quantidade de referências, há de se compreender que, como obra artística, não se trata apenas de referenciações vazias. Trata-se de apresentar como e quem construiu parte da história do Funk brasileiro. Contada, cantada e produzida por quem vive e viveu a história do próprio funk. Estou falando aqui de historiografia (escrita da história), isso é de uma importância imensa.

O funk brasileiro tem gênese há mais de trinta anos já com a sina de ser um movimento contracultural, nascido e difundido principalmente nas periferias, inadequada ao moralismo e aos bons costumes conservadores. Nasce carregado por gente pobre, por gente preta, crucificado por cantar como é boa parte da vida dentro de tal contexto. Assim como qualquer base do Hip-hop, é sobre escrevivência.

Porém, diferente do Rap que em sua maioria é sobre apontamentos e urgências necessárias, o Funk – que é consciente por natureza – o que não quer dizer que seja perfeita sendo necessárias contestações do gênero, principalmente em relação a machismo – fala que, mesmo estando num contexto negligenciado e massacrado pelo Estado e pelas elites, existe a possibilidade e potência se divertir, de ter prazer, de realizar desejos, enfim, de viver e ser demasiadamente humano.

História do Funk: História(s) do Brasil

Em tempos tão – no mínimo – complexos, em que a deturpação das histórias vive a espreita, nesse projeto elitista de roubo da História, ouvir a história contada por quem vive elas é um grito de afirmação de existência. Portanto, combustível revolucionário – contra esse projeto genocida.

Os três sets de “Homenagem aos Relíquias” são aulas completas de história, história do funk e consequentemente do Brasil. Diferente de como é comum ensinar e aprender história, há uma pedagogia que atravessa pelo afeto e respeito da lembrança. Também pela vivência, pelo presente e, quiçá, pelo futuro do Funk, que parece continuar criativo, salvador e promissor. Ainda que frente a todo o preconceito e tentativa de apagamentos.

Tudo isso só constata que o funk está vivo como nunca e pretende viver, intensamente, por muito tempo. Em todo ato há um discurso, discurso esse que não necessariamente precisa vir por palavras diretivas, apontamentos ou coisas do gênero. Isso porque sempre há o simbólico, que não vem pela compreensão (só) da oralidade, mas, sim, pela análise de realidade, pelo simbólico. São corpos inevitavelmente políticos que expressam esse todo e o mais fascinante diante tudo isso é que nos permite dançar e rebolar bem a bunda enquanto bebemos uma cervejinha ou balançamos uma latinha. Ufa.

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