Hip-Hop na fronteira: Conheça Mano Zeu

Diretamente de Foz do Iguaçu, conversamos com Zeu para saber como é a cena na fronteira. Vem conferir!

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Que o Hip-Hop é um movimento transnacional todo mundo já sabe! Seu grande trunfo é justamente a capacidade de adquirir feições próprias em cada região. Para falar sobre como é viver o Hip-Hop na fronteira y otras cositas más, convidamos Mano Zeu! Ele vive em Foz do Iguaçu, uma cidade brasileira conhecida por fazer fronteira com Puerto Iguazu na Argentina e Ciudad del Este, no Paraguai.

Zeu é DJ, beatmaker, produtor, MC, escritor, cineasta e mediador cultural e é essa bagagem que faz dele um hip-hopper per si. A frente de projetos comunitários como o Estúdio Eco Comunitário, a Biblioteca comunitária do Cidade Nova e de publicações independentes, trocamos uma ideia com o Mano para falar das cenas de Hip-Hop na fronteira e de como é fazer arte muito fora do eixo, na convergência de 2 rios, 3 países e mais de 5 línguas. Dá um confere!

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DJ Mano Zeu

Zeu por Zeu

Kalamidade: Quem é você como artista, como cidadão, como ser humano?

Zeu: Zeu é um mano arteiro multifacetado que não entende como consegue fazer tanta coisa sendo ruim em todas elas (risos)… (vi isso num meme). Na abertura da cartonera ‘Hermanos’ eu me autoidentifico como alguém que vai na contra-mano da moda, suor e saliva salgados como o mar e abraço dulce como a cachoeira.

Me sinto raiz e fruto. Gosto de natureza e computadores, comida vegana e churrasco, suco verde e cachaça, ruas de terra e asfalto, hortas e equipamentos de som, rap e forró, cumbia e tango, rock e MPB. Não gosto de repetir músicas nem fórmulas e não gosto de estradas já definidas, gosto de trilhas que me levem ao desconhecido e inesperado.

Mano Zeu, hermano, cidadão do mundo, como poeta é um bom DJ. Pesquisador da musica negra, se organiza no quilombo comuna. Luta contra os senhores de engenho moedores de cana e carne negra que transforma tudo em mercadoria. Nas trincheiras da escrita, como esgrima, se esquiva, se alastra, assim como a água que nem os canos prendem. En la contra-mano da moda, da onda, suor e saliva salgados como o mar e abrazo dulce como dominguear en lunes en una cachoeira. Pantera negra, de dentes em riste, mandando a letra. Porte ilegal de sonhos. Caneta preta.

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K: Como você se aproximou do Hip-Hop? Foi no início da cena Hip-Hop na Frontera?

Z: Na verdade acho que foi o Hip-Hop que se aproximou de mim. Os anos 90 foram um dragão neoliberal incendiando os barracos de madeira da favela do Jd. Paraná. Eu era aquele pivetinho que gostava de futebol e pescaria e trabalhava em tudo o que aparecia: catava materiais recicláveis, vendia picolé, pastel, trampava em colheita de algodão, cuidava de carro e trampava na feira. Depois do falecimento de meu pai, minha mãe Dona Maria estava criando 5 filhos sozinha, então a gente saía nos corre pra dar aquela força, mas o dinheiro nunca era o bastante.

O Hip-Hop me aparece no meio desse contexto. Acho que me apareceu até tardiamente porque a favela do Jd. Paraná não tinha acesso a MTV, CDs ou revistas que falasse disso. O movimento estava mais nas capitais e grandes cidades e lembro que um primo que vivia em Curitiba me trouxe uma fita cassete do Racionais. E ,por incrível que pareça, não dei muita atenção. Eu estava mais ligado à cena punk rock da AKLP e começava a me interessar por música eletrônica. Fui trabalhar no Paraguai e tive acesso a equipamentos de DJ e CDs de rap.

O Hip-Hop me cercou porque como eu tinha os equipamentos de som, o meu barraco acabou sendo um ponto de encontro e depois de ensaios e assim eu acabei sendo DJ de todos os grupos de rap que surgiram na zona norte de Foz naquela época. Daí foi um passo para começar a produzir e depois escrever letras e cantar rap também.

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K: Há uma cena Hip-Hop na/da Fronteira? Se sim, o que caracterizaria essa cena?

Z: Desde os anos 90 Foz sempre teve cenas de Hip-Hop. Teve um tempo em que se concentrava mais nas áreas centrais da cidade e um tempo em que só acontecia nas favelas. A cena de hoje não se difere do restante do Brasil. É uma galera nova que pegou o bastão e está seguindo adiante na correria. Aqui por ser uma cidade que faz fronteira com dois países tem esse diferencial, da mistura com outras culturas. Em Puerto IguaZu (Argentina), tem bastante grafitti, em Ciudad Del Este (Paraguai) tem bastante break, em Foz (Brasil) tem bastante rap. Muitos grupos de rap e MCs solo e uma cena de Dj se construindo com organização de diversos eventos agitando as noites das quebradas e dos bares centrais.

Nos últimos anos a cena das batalhas de rima cresceu bastante e acabou sendo o carro chefe do movimento na cidade e no interior paranaense como um todo. O que eu acho um pouco perigoso e estive falando com a galera que o movimento tem que ser diversificado e atuar em várias frentes. Eu digo que apostar em uma coisa só é como ter uma horta e plantar só couve. Se der pulgões e lagartas a pessoa passa fome (risos).

Com o advento das batalhas parece que o Hip-Hop ficou muito focado na imagem do/da MC, esquecendo um pouco dos outros elementos. Quando eu conheci o movimento, eu achei genial o lance dos 4 elementos: DJ fazendo a trilha sonora, MC fazendo a poesia, b.girls e b.boys dançando a música feita por eles e grafiteirxs trabalhando toda a arte visual. Hoje os grupos de rap não colocam a dança no palco e fazem suas artes, capas de cd, flyers no computador sem a ajuda da galera do grafite. Muitas vezes se apresentam sem DJ. Não tem como falar que isso é hip-hop. Daí chegou numa fase onde a galera mais nova acha que hip-hop é rap cantado em inglês.

Foz tem um movimento Hip-Hop forte, a base foi bem construída. Temos coletivos de grafiteirxs e pixadorxs, de break, de DJs, de MCs, estúdios, eventos, encontros e engajamento com outros movimentos.

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DJ Mano Zeu – Acervo Pessoal

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Sobre projetos

K: Pode falar um pouco sobre o Estúdio Eco Comunitário, a Biblioteca Comunitária e o Capivara Preta? Como foram os primeiros passos?

Vamos lá!

Estúdio Eco Comunitário:

Eu sempre acreditei e concentrei minhas forças em empreendimentos comunitários. A favela do Jd. Paraná, onde eu nasci, foi uma ocupação toda construída em mutirão e ali eu tive também a experiência de hortas comunitárias. Quando eu comprei os equipamentos de som no final dos anos 90 já se tornaram automaticamente equipamentos comunitários.

Além dos ensaios com a galera do rap esses equipamentos iam alegrar as festas de aniversários, casamentos e de fim de ano da favela. Na aquisição dos equipa tive uma grande sacada de comprar um sampleador e um toca-fitas gravador. Então a gente gravava todos os nossos ensaios e saía de rolê com um parce que tinha carro para escutar o som. Depois selecionava as melhores e fazia cópias para distribuir pela cidade. Então o estúdio começa aí. Quando eu saí de casa para viver solo ele me acompanhou por todos os bairros que morei de aluguel: Jd. Paraná, Jd. Estrela, Jd. Petrópolis, Jd. Belvedere, Porto Belo, Vila C, Puerto Franco (Paraguai) e agora no Cidade Nova.

Em 2007 a galera do Hip-Hop tinha uma ocupação na área central da cidade e lá montamos outro estúdio que se chamava ‘Yô Comunitáriô’. Esse durou até a reintegração de posse.

Biblioteca Comunitária do Cidade Nova:

Quando a gente montou nosso primeiro coletivo ‘Cartel do Rap’, pensamos em ter um veículo de comunicação impresso e criamos um fanzine mensal. Ali a gente divulgava os eventos, colocava fotos, letras de música e literatura em geral. Em 2008 quando vim morar no Cidade Nova eu trampava no Centro de Controle de Zoonozes e conheci algumas pessoas que também moravam aqui. Eles conheceram o fanzine e criamos um no CCZ. A ideia era fazer também um fanzine do Cidade Nova.

Em 2011, eu estava participando da reconstrução do CDH Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Foz e a gente criou um jornal chamado ‘Manifesto’. Em uma das edições trazia a tona o caos do transporte público da cidade e eu entrevistei mulheres do Cidade Nova que estava à frente dos protestos contra o Consórcio Sorriso. O povo daqui se inspirou e a gente criou o jornal do Cidade Nova chamado ‘CNI – Cidade Nova Informa’. Alugamos uma salinha para montar a redação, começamos a levar nossos livros e em pouco tempo se tornou uma biblioteca.

Depois, descobrimos um espaço físico que havia abrigado o projeto Atitude e que estava abandonado pela prefeitura. Entramos com um pedido de comodato e daí montamos no local a Biblioteca Comunitária do CNI. No dia da inauguração contamos com a presença do GOG e de uma galera do Hip-Hop do Paraná que grafitaram a biblioteca inteira. Além das atividades referentes à literatura, funciona como um centro cultural e é um dos poucos espaços coletivos do bairro.

Capivara Preta:

Quando o coletivo Cartel do Rap acabou em 2010 o fanzine se acabou junto. Depois criei outros fanzines nos coletivos que participei: Frontera Hip-Hop e Família Zona Norte. Em 2014 a gente montou o Coletivo No Hay Frontera e na época eu saí de mochilão. Na estrada lancei um livreto de poesia por um selo fictício que chamei de ‘Feito em Casa’. Em 2016 a gente lançou o selo ‘Capivara Preta’ e em 2017 o ‘Kapivara Kartonera’. A ideia foi que todo mundo que participa do coletivo também são escritores, então começamos a lançar coletâneas com os nossos escritos e depois livretos individuais e depois coletâneas e livros de outras pessoas de fora do coletivo. Recentemente lançamos um projeto de construção de uma editora gráfica comunitária, mas ainda não conseguimos o apoio financeiro.

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DJ Mano Zeu – Acervo pessoal

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Hip-Hop y otras artes

K: Qual a relação do Hip-Hop na fronteira com Cinema y otras artes?

Z: A gente do Hip-Hop de Foz demorou para se atentar sobre a importância do cinema. Nos 10 primeiros anos de movimento na cidade não existe praticamente nenhum registro em vídeo. Em 2007/2008 quando eu venho morar no Cidade Nova a gente começou a fazer alguns ensaios fotográficos e pequenos registros em vídeo pra postar em blogs e para trabalhos escolares.

Em 2009, conheci o Danilo George, ele estava fazendo o TCC sobre o Hip-Hop de Foz. Comprou uma câmera bem amadora para registrar as entrevistas e esse material a gente transformou em um documentário chamado: As Muitas Faces de uma Cidade. É um documentário bastante amador e com toda sorte de erros técnicos possíveis, mas muito importante porque registrou um momento da cidade muito difícil. Foz ocupava o topo do ranking de assassinatos de adolescentes e a pobreza e desemprego engolia as periferias todas. O filme teve bastante repercussão, aprovação e censuras.

Depois, em 2013, eu produzi um documentário chamado Un Circo Kamikaze. É um filme sobre uma troupe de circo e músicos argentinos que estavam de mochilão pelo Brasil e ficaram hospedados em minha casa. Ali eles gravaram um disco no Estudio ECO e fizemos uma série de espetáculos e atividades no Cidade Nova.

Em 2014, eu produzi outro documentário chamado Sinal Fechado – Semáforo em Rojo. Esse documentário traz uma galera de toda a América Latina e várias cidades do Brasil que vieram na Conferência de Circo do Paraguai e ficaram hospedados em minha casa, onde fizemos várias atividades para as crianças do bairro.

Eu participei também de um grupo de estudos de cinema com um pessoal da UNILA, que se chamava ‘Los Pelotudos’. E depois fui formar o grupo de cinema Gyreia onde produzimos curta para participar do festival Curta Iguassu. Depois, assinei trilha sonora pra diversos outros curtas.

Eu acredito que o Hip-Hop tem toda relação com o cinema e cada vez mais tem que se apropriar dessa linguagem para além de vídeoclipe. Lá atrás Lênin já observava o cinema como uma arma revolucionária.

Eu reassisti recentemente o filme ‘Branco Sai Preto Fica’, de Adirley Queirós e creio que é por aí. A música rap já denuncia o racismo e toda a podridão do sistema e quando isso vai pra grande tela amplifica a mensagem. O maestro do Canão já havia percebido isso. Sobre outras artes o teatro, a literatura, o esporte, tudo vai bem com o Hip-Hop.

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Dj Mano Zeu -Acervo pessoal

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Indica umas referências pra gente!

10 filmes:

  • Ali
  • Branco Sai Preto Fica
  • Django Livre
  • Faça a Coisa Certa
  • Indomável Sonhadora
  • Mariguella (documentário)
  • O Menino que Descobriu o Vento
  • Uma onda no Ar – Radio Favela
  • What Happened, Miss Simone?
  • Wattstax – A woodstock Negra.

10 livros:

  • A Última Folha do Caderno (Lucas Afonso)
  • Gramática da Ira (Nelson Maca)
  • Literatura Pão e Poesia (Sergio Vaz)
  • Negra nua crua (Mel Duarte)
  • Nóis é Ponte e atravessa qualquer rio (Marco Pezão)
  • Olhos d’água (Conceição Evaristo)
  • Patativa do Assaré – Antologia
  • Quarto de Despejo (Carolina Maria de Jesus)
  • Sabotage Um Bom Lugar – Biografia
  • Teatro hip-hop: a performance poética do ator-MC (Roberta Estrela D’Alva).

10 canais do Youtube:

  • Ferrez
  • Galãs Feios
  • Lila Downs
  • Liziqi
  • Manos e Minas
  • Panelaço
  • Preta Rara
  • Sarau na Favela
  • Silvio Almeida
  • Uplay Unila.

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K: Como você desenrolou a vida na quarentena?

Quando veio a quarentena, eu estava com 50 centavos no bolso e como trabalho de DJ, sem chances de descolar uma grana. Depois peguei o auxilio emergencial que dá uma pequena ajuda, mas não paga todas as contas. Ganhei 4 cestas básicas e alguns helps de algumas pessoas. Tentei arrecadar algum recurso com lives, mas sem muito sucesso, fui mais um carro parado nesse congestionamento. Quando a cidade flexibilizou o isolamento social e os bares voltaram a fazer eventos eu decidi não voltar a tocar durante a pandemia.

Por outro lado, eu nunca imaginei que teria durante minha existência 8 meses pra ficar em casa. Com esse tempo eu estou organizando minhas músicas e meus escritos. Também me reencontrei com meu quintal e estou cuidando da horta como nunca cuidei antes. Tive bastante tempo para cozinhar e para estudar as plantas, em especial as PANCs.

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K: Onde encontramos seus projetos?

Página da editora: kapivara kartonera

Página de poesias: Poesia Mano Zeu

Blog de música: América, la negra

Rádio: Rádio Madruga

Instagram: Mano Zeu

Portfólio: Behance

Canal do youtube (se inscrevam): Dj Mano Zeu oficial

Mix-tapes e playlists:

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K: Queres deixar um alô para os leitores?

Z: Quiero…

Apostem na diversidade, escutem as minas, as manas e as monas, cultivem alimentos orgânicos, comprem dos pequenos produtores, reservem um tempo pra ficar de bobeira (não romantizem a correria frenética), estudem, e façam aquele rolezinho saudável (seja na balada, na praia ou na cachoeira). E se envolvam nos projetos comunitários da quebrada. Tamo junto!!!

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Satisfação, Mano Zeu! Sem palavras.

Caso você tenha gostado de ler sobre o encontro que o Hip-Hop fez acontecer na fronteira, pode gostar desse texto aqui: Atrizes a atores que já participaram de projetos de Hip-Hop

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