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A interseção entre o Hip-Hop e a música eletrônica: um bate-papo com AEONER

Na história da música, as interseções acontecem quase de forma natural. Compartilhando instrumentos, estruturas, samples e etc… os gêneros quase se fundem em uma ordem não convencional e revolucionam a arte. Os universos que parecem não se conversar conseguem coexistir em um cenário dinâmico e gêneros como o Hip-Hop e a música eletrônica constroem grandes diálogos.

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Tanto o Hip-Hop como a música eletrônica emergiram como forças importantes no panorama global, cativando um grande público e moldando a cultura popular. Para conversar sobre esse encontro, convidei o DJ colecionador de discos que faz beats com máquina, AEONER. Belorizontino, AEONER é um dos vulgos de Garrel, que desde 1999 participa ativamente da cena musical da capital mineira frequentando rolês de Hardcore, Hip-Hop e Soundsystem

Assim como o Punk, o Hip-Hop é uma ética e toda ética vem acompanhada de uma estética, essa é uma das relações.

AEONER

Antes de se tornar um grande mestre das máquinas, AEONER enxergou as estéticas dos gêneros como confluentes, o que o levou a se interessar por produção, principalmente aquela que é baseada em samples. Sendo uma das bases do Hip-Hop, os samples referem-se à prática de pegar uma porção de uma gravação de áudio pré-existente e reutilizá-la em uma nova gravação.

Essa técnica é fundamental na produção de beats, e tem suas raízes nos primórdios do gênero, quando DJs usavam toca-discos para isolar e repetir partes rítmicas de músicas Funk, Soul e Disco durante festas. AEONER enxerga o break como o começo e ponto principal da interseção de dois mundos.

O Break é uma coisa fundamental para gente discutir, porque o break antecede na realidade uma reflexão sobre Hip-Hop e música eletrônica. Essa reflexão, ela tem, na minha visão, relação com tudo que se faz depois, ela tem uma questão epistemológica em relação a história, a gente tem que entender ali, o que é o break? Você tem ali na década de 70, quando você começa a ter block parties centrais no sul do Bronx, e vai ter DJs entendendo que eles podem pegar um determinado trecho instrumental que é justamente o break e usando ali dois toca-discos e um mixer, muitas vezes um mixer primitivo, e manter aquela faixa tocando de maneira indefinida e infinita, então esse eu acho que é uma arqueologia ali do break como crucial nessa relação.

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Seguindo uma linha do tempo, o break passa por diversos momentos da música a partir da década de 70, chegando ao Techno alemão até a música popular britânica. Tanto no Hip-Hop, quanto na música eletrônica, o modus operandi parte dos produtores que frequentemente sampleam breaks de discos antigos para criar novos beats. Um desses breaks icônicos é o “Amen Break”, um trecho de bateria da música “Amen, Brother” do The Winstons. Experimentando uma certa popularidade nos anos 80, chegando a um nicho underground gigantesco, a música eletrônica e o Hip-Hop conseguiram chegar a um consenso de transformação das paisagens sonoras.

Para mim esse (o break) é o grande ponto de ligação na realidade. O ponto fundamental que vai unir o Rap, a produção instrumental do Rap com a música eletrônica. E aí, nesse caso, até muito mais europeia do que norte-americana. Tanto naquilo que vai ser chamado de Techno na Europa. De uma forma um pouco diferente da maneira que era tratada ali nos Estados Unidos. Como principalmente os gêneros ali ingleses. Portanto, o Hardcore, depois o Jungle. E aí a coisa vai seguindo. O elemento de conexão central que eu colocaria no primeiro ponto aqui é o break. Portanto a ideia de você pegar um determinado trecho fundamental de um sample, tender a trabalhar e manipular ele. Acho que isso é o primeiro ponto.

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Na década de 80, a explosão do “modo eletrônico de se fazer música” estourou e máquinas como a TR 808 se consolidaram como ícones da produção musical. A Roland TR-808 Rhythm Composer, frequentemente chamada de 808, é uma das drum machines mais influentes de todos os tempos, tendo um impacto profundo especialmente no Hip-Hop e no electro. O Electro combinou os sons futuristas da música eletrônica com as sensibilidades rítmicas do Hip-Hop, incorporando sintetizadores, baterias eletrônicas e vocoders em suas faixas, criando uma fusão particular de gêneros. A história de nomes como Afrika Bambaataa e Egyptian Lover se inspirando em Kraftwerk vem desse conceito do “modo eletrônico de se fazer música” que transpassa também sua estética afrofuturista.

E na ideia da música eletrônica, naquilo que vai ser entendido como música eletrônica fora da academia, que é uma ideia de futurismo e uma ideia de afrofuturismo que é derivativa disso. Então quando você tem, por exemplo, o Afrika Bambaataa ouvindo Kraftwerk que estava ali numa posição que era muito particular. Porque já estava fazendo música eletrônica com vários elementos que a gente vai entender como música eletrônica. Porque aquilo era absolutamente novo, totalmente futurista, diferente de tudo. Quando você vai ver a galera de Detroit. Mais até do que de Chicago nesse sentido. Mas a galera do Techno de Detroit está ali, falando dos anos 80, eles citam com muita força um programa de rádio que eles acompanhavam em Detroit que tinha a sintetização da música eletrônica europeia inicial, portanto Kraftwerk, eventualmente alguma coisa ali de krauthawk, que vai ter sintetizador. Vai ter elementos ali que são cósmicos. Que são muito doidos. É esse o ponto, o afrofuturismo, essa possibilidade de transmutação que a tecnologia digital vai conferir. Porque MPC. Isso é uma coisa muito importante. Sampler. É uma tecnicalidade.

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Lançada na década de 80, as MPCs (Music Production Centers) são dispositivos de produção musical desenvolvidos pela Akai Professional, que se tornaram icônicos no mundo da produção, especialmente no Hip-Hop. Elas combinam funcionalidades de samplers, sequenciadores e controladores MIDI, permitindo que os produtores criem músicas de forma intuitiva e expressiva.

Só que MPC. Embora a primeira tenha um filtro analógico. A MPC é digital. SP-1200. Elas são digitais. O computador é digital. Quando você vai ter tracker. Que vai ser fundamental para você recortar um break do jeito que se faz no Jungle, por exemplo, você vai ficar com o computador, então é futurista nesse ponto também. Então acho que esse é um ponto muito forte de conexão de uma coisa com a outra, a maneira de fazer e a relação que você tem com as máquinas na maneira de fazer, ela é uma coisa só tanto na década de 80, quanto nos anos 90.

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A partir dos anos 90 as técnicas de produção tomaram amplitudes gigantescas, e com elas a possibilidade de experimentar a confluência entre música eletrônica e Hip-Hop de forma mais aberta e pelo mundo. Na segunda metade dos anos 90 a revolução da música popular britânica criou influências que iriam ecoar em meados dos anos 2000, como Jungle e o Drum’n’bass.

Você tem um movimento, bem, para mim pessoalmente o grande nexo da música eletrônica mundial não é os Estados Unidos, é o Reino Unido. Por quê? Porque você tem uma tradição de música eletrônica que ao mesmo tempo é muito festiva também é muito séria. Os dois grandes países que têm as melhores lentes para entender culturalmente o que é interessante e relevante são o Reino Unido e o Japão. Eles têm muita sensibilidade para identificar o joio do trigo, identificar uma essência muito poderosa. Então nos meados dos anos 90 você tinha pessoas ali nos Estados Unidos que estavam fazendo certas convergências, mas que não tinham nenhum tipo de ressonância nas cenas norte-americanas. E isso é muito doido.

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Nesse contexto histórico, a amostragem e a remixagem têm sido técnicas essenciais tanto no Hip-Hop quanto na música eletrônica. Produtores como, DJ Shadow e J Dilla, garimpavam discos de vinil, extraindo pausas de bateria e trechos musicais para criar novas batidas e texturas. Essa abordagem técnica influenciou os produtores de música eletrônica, que começaram a samplear elementos de faixas de Hip-Hop e a incorporá-los em suas composições. A prática da remixagem, onde os artistas reelaboram músicas existentes, também se tornou um fio condutor entre os dois gêneros.

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Você tem nos Estados Unidos um cara que é o DJ Shadow, ele está na Bay Area lá em São Francisco. E ele é um cara que vai fazer uma análise e uma interseção extremamente profunda entre a base do Hip-Hop no sample e nos discos, a escavação de break e de sample, e vai aplicar isso por meio da MPC 60. Ele vai conseguir aplicar isso numa linguagem que ela é Hip-Hop, mas que deve muito no que estava acontecendo na música eletrônica inglesa,  e ele (Shadow) não consegue lançar nos Estados Unidos. Eu acho que Endntroducing é um disco central, absolutamente central para se entender que tipo de conexão que a gente pode fazer entre uma técnica de produção que é extremamente Hip-Hop, mas aplicado numa técnica de produção que é mais abrangente e que vai ter uma estética que eventualmente em alguns momentos ela pode ser lida como rave. Tem umas faixas que são breakzão, Breakbeat, mas num sentido britânico da coisa. E o que é interessante disso, é que você tem um Hip-Hop instrumental surgindo ali. Algumas coisas são controversas.

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Considerando “Endtroduncing” como grande marco da interseção entre o Hip-Hop e a música eletrônica, AEONER consegue indicar o caminho que essa convergência faz através do tempo, citando artistas como, Aphex Twin, Boards of Canada, Autechre e Squarepusher que fizeram caminhos interessantes experimentando aplicação de barulhos e texturas e costurando pontos em comum entre os gêneros.

Primeiro, na virada dos anos 90 para os anos 2000 nos Estados Unidos, a forma de produção de Rap mudou muito. E você tem por exemplo: Pharrell, Neptunes… essa estética de sintetizador que começa a chegar, então a galera para de usar sample até por questões de ordem jurídica, começou a ficar muito caro usar sample. Você tem o Timbaland, que eu acho que é um grande expoente de uma forma de produção gigante, muito foda muito programada, timbrisão, sintetizador, que é uma tradução que está viva hoje com o Mike Dean que é aquele super produtor, eu até tive com ele em Los Angeles agora, foi muito legal.

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Voltando a J Dilla, nascido em Detroit, Dilla pegou grande parte da influência do Techno de sua cidade como parte de suas influências. “Ruff Draft”, lançado sob o vulgo de “Jay Dee”, foi originalmente lançado em fevereiro de 2003 como um EP, por sua então recém-fundada gravadora, Mummy Records, e distribuído pela Groove Attack, uma gravadora alemã. Em 2007, Ruff Draft foi estendido, remasterizado e re-lançado postumamente como um álbum solo pela Stones Throw Records.

Vamos prestar atenção na música eletrônica, tanto norte-americana, quanto europeia. O Dilla é de Detroit, isso não é obviamente uma coincidência. É um cara que cresce escutando Techno de Detroit, muito influenciado pelo House de Chicago.

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Você tem um timbre que é muito presente. Tecnoide ali. Que está contido nele que quando ele ganha uma liberdade artística e estética, ele vai produzir uma forma de Hip-Hop instrumental que é principalmente eletrônico. O “Ruff Draft”, que é um disco dele, quando ele estava ali no ápice, meio que joga tudo para o alto e vai querer ser indie, fazer o que está na cabeça dele.

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É um disco que tem faixa 4×4, é um disco cheio de Moog*. Ele vai trazer uma estética Moog. Muito forte. Por mais que o Donuts que é um disco de sample, daquilo que hoje é chamado de drumless, talvez seja o mais icônico, o caminho dele não é esse, o timbre característico dele é um timbre eletrônico, é Moog, bateria forte, tecnoide não tenho dúvida sobre isso. Vem de Detroit.

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Chegando nos anos 2010, vimos como o trabalho de pessoas como Kanye West (Yeezus, 2013) e Flying Lotus (Los Angeles, 2008) construíram mais uma camada de aproximação com o modo de produzir eletrônico, visando uma chegada mais abrangente num mainstream futuro. Não é atoa que vemos os frutos dessa construção ecoando mais do que nunca nas plataformas de streaming, e assistimos 80 mil pessoas pagarem para ver um show da turnê “Circus Maximus” do Travis Scott. O futuro já está acontecendo, e com ele a aproximação entre o Hip-Hop e a música eletrônica vai vir cada vez mais forte, nos conduzindo cada vez mais para essa interseção.

Eu acho que esses três discos introduzem. O Ruff Draft, e o Los Angeles do Flying Lotus. São bons exemplos, mas francamente qualquer disco do Travis Scott, desses discos ali novos, e veja bem eu nem gosto do Travis Scott.

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Em resumo, a interseção entre o Hip-Hop e a música eletrônica, apresenta um panorama mais animador e dinâmico de convergência musical. Desde as origens do Hip-Hop com os breaks nas block parties do Bronx, passando pela influência dos instrumentos eletrônicos como a TR-808, até a sofisticada produção moderna utilizando MPCs e samplers, a fusão entre esses gêneros sempre se mostrou natural e evolutiva.

Moog* Moog é uma marca de sintetizadores eletrônicos criada pelo engenheiro Robert Moog. Os sintetizadores Moog são conhecidos por seu papel crucial na evolução da música eletrônica e por seu som distintivo, que influenciou diversos gêneros musicais desde a sua introdução nos anos 1960.

Texto por: Isabela Carolina Rosa

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