Uma entrevista com Mari Paulino – a mente pensante do álbum “A Mensagem”.
Regravação não é algo tão tradicional no Rap. Existe até um certo “preconceito” em usar rimas de terceiros ou ghostwriters, porque o que é necessário é ser autêntico. Porém, às vezes, é necessário abrir exceções dessas regras para que clássicos cheguem a outras gerações por outras vozes.
Pensando nisso, e também em reverenciar alguns daqueles que abriram os caminhos para o Rap chegar onde está hoje, Mari Paulino, Label Manager da Altafonte/Boa, criou o projeto “A Mensagem”. Para a produção artística, ela convidou ninguém menos que o DJ KL Jay.
A curadoria dele também foi muito fundamental para poder ter esse aval, esse peso de ter uma pessoa tão importante no Rap, também falando: “a gente precisa disso, por mais original que a gente seja, as regravações também são fundamentadas e são importantes para o crescimento do gênero, para algo maior,
diz Mari ao Kalamidade
Na conversa de uma hora que tivemos, ela explicou cada detalhe para dar vida ao álbum que resgata clássicos de Dina Di, Da Guedes, Edi Rock, Clã Nordestino, Sistema Negro, 509-E, Rappin’Hood, GOG, Marcelo D2 e De Menos Crime.
Também fala da escolha de cada um dos intérpretes, beatmakers, produtores de diferentes regiões do Brasil, e o conceito da capa assinada pela grafiteira JAKE. A inspiração para o título é da música “The Message”, de Grandmaster Flash & The Furious Five.
Além disso, a também jornalista diz que tem planos para um segundo volume:
A minha vontade é fazer uma “A Mensagem” volume 2, se a gente tiver condições. Eu acho que vale muito ter… Mas crescer, né? É também importante mostrar para os artistas que a gente cuida direitinho do projeto também. Não tínhamos a intenção de fazer um projeto só para números.
Kalamidade: Queria entender como aconteceu a sua mudança da comunicação, fazendo assessoria de imprensa e escrevendo sobre música, para a indústria da música, passando para o outro lado do balcão?
Mari Paulino: Eu acho que essa mudança teve muito a ver com o processo da pandemia. Em 2019 eu comecei a trabalhar como assessora de comunicação na Boia Fria Produções, com a Mari Bergel. Antes, eu trabalhava na assessoria de uma universidade e sempre fazia uns freela para o pessoal da música, por já ter esse contato. Aí, meu trabalho com a Mari começou em meados de fevereiro com o Beat Loko, do DJ Cia.
Como a Boia era(é) uma produtora, você faz o seu papel, mas também tem a oportunidade de conhecer outros ecossistemas dentro da música, porque até então eu só conhecia essa parte de imprensa, pegando o projeto já pronto, ouvia o disco, conversava com o artista, a gente escrevia o release e dali para frente fazia a divulgação. Lá, eu tive a oportunidade de conhecer mais processos antes de chegar nesse momento.
No começo, a Mari estava trabalhando muito com a Amanda Magalhães, que iniciava sua carreira, então, tinha que pensar em clipe, pensar single, pensar data, pensar o conjunto todo… tudo aquilo que forma para fazer um show, para fazer um disco. Foi assim que tive mais contato também com esse planejamento para o digital.
Mas quando veio a pandemia, a produtora não conseguiu segurar os funcionários, como aconteceu com muita gente. Então, comecei a pegar uns freelas e a fazer umas paradas na área de comunicação.
Nesse meio tempo, surgiu uma vaga na Universal Music para trabalhar como Assistente de Digital, que é o departamento digital que cuida dessa parte de pitching, de venda para as plataformas de música, de playlist, de capa.
Ali eu consegui ter mais contato com o que era um ISRC (International Standard Recording Code ou Código de Gravação Padrão Internacional), o que era essa parte mais burocrática de plays, de sistema, de Spotify for Artists, desse outro lugar dentro da música, dessa produção, mas pra parte digital.
E lá, como uma gravadora que tem bastante acesso, bastante recurso também, tive contato com projetos especiais. Depois mudei para music brands, onde tive um despertar muito grande nessa ideia de criatividade, de pensar em projetos, porque a gente pensava os projetos com marca, campanhas, catálogo, organizava calendário, organizava agenda…
K: Uma coisa foi puxando a outra e você foi mergulhando nos processos…
MP: E por eu ter bastante conhecimento, anteriormente, por ter trabalhado bastante nessa parte mais de cobertura, de estar na rua, estar com a galera, estar conversando, me deu bastante destaque e vantagem para trabalhar com o que é chamado de música urbana, né?
Quando eu entrei na Universal em 2021, o mercado da música deu uma virada de chave muito grande de entender que a música urbana estava começando a estourar demais. Tinha vários artistas e eles precisavam muito desse lugar, desse segmento, de quem que estava fazendo, e eu também precisava do conhecimento de como era esse processo.
Depois de um tempo na Universal, fui pra Altafonte, que é onde eu tô até agora, mais dois anos já. Aqui, como Label Manager, eu consigo ter uma visão mais do dia a dia de todo esse processo, porque parece que eu fico mais perto, porque uma gravadora ainda é um pouco mais distante, né? Esse contato com artista geralmente fica mais com o AR. Quando você faz projetos especiais não tem esse contato com equipes.
Na distribuidora tem outra forma de trabalhar, muitos mais artistas, muito mais música… mas a gente na Altafonte, uma distribuidora boutique, como é falado muito no mercado, consegue ter um atendimento um pouco mais exclusivo, meio que um pé na gravadora, um pé na distribuidora. A gente não consegue dar atenção para todo mundo, tornando-se um braço do escritório desses artistas, pensando em estratégias, sugestões e tudo mais dentro desse universo.
Na Altafonte, eu continuei em música urbana, mas agora também tenho dado uma expandida nessa ideia de música urbana também, porque é muita coisa, né? Tipo, vai na caixinha comum de Rap, Trap, Funk, mas tem música brasileira… Baianasystem, por exemplo, é música urbana total, sabe? Música de carnaval é uma música urbana… são músicas que tocam na rua, músicas que tocam com o povo e aí fui me desenvolvendo, então essa foi a minha timeline dessa mudança dentro da comunicação.
K: Você observou muita diferença do que você imaginava que seria dentro da indústria? A gente como jornalista tem alguns acessos, mas observa de fora. Estando dentro é outra coisa, você olha de dentro para fora. Viu muita diferença, era o que você imaginava ou você meio que foi surpreendida com a quantidade de informação e de coisas que você descobriu?
MP: Eu fui com a cabeça aberta para adquirir informação, né? Porque é uma forma de hackear o sistema, de conseguir ter conhecimento. Não sei se fui surpreendida, mas assim, tem muita informação, muitos macetes que ficam mais fácil pra gente conseguir organizar um lançamento, que às vezes trocava ideia com o artista e ele não fazia a menor ideia.
Mas isso dentro de um ciclo de uma gravadora, de uma distribuidora, é muito comum, as pessoas já têm isso de prático, por exemplo: qual é o melhor dia de lançamento? A gente sabe que sexta-feira é o dia comum, porque tem playlists que viram na sexta. Mas isso não significa que o artista precisa lançar numa sexta-feira. Ele pode lançar em outros dias também. E isso também para artistas que querem fugir de datas de lançamento de pop-stars, em que tipo, todo mundo vai estar falando daquele assunto, daquele projeto, eles conseguem fazer isso.
Na Altafonte, por ter mais contato com equipes de artista é possível entender como as pessoas trabalham. Antes eu pensava que era uma coisa muito corporativa, mas não é um corporativo, sabe? Ele tem um corporativismo muito específico do mercado da música, mas as coisas são até um pouco mais soltas.. Então, as pessoas têm uma maior descontração dentro de um mercado formal.
Também tem muita coisa que eu penso, tem uma galera que eu sei que trampa bem, mas só que não tem tanta oportunidade de estar num lugar desse, sabe? E aí eu vejo muita gente que chama um amigo, um parente para trabalhar. É óbvio, é normal, né? Você vai chamar alguém que você conhece, porque dentro desse mercado rola muita puxada de tapete também, né? Isso é uma coisa que eu acho que me surpreendeu muito. E que assim… pra ser boicotado é muito fácil dentro desse mercado.
Mas quando você para pra pensar na história do outro lado, sei lá, tipo: por que alguns artistas não vão pra frente? Por que alguns artistas não conseguem crescer? Por que esses artistas não conseguem pegar nada? Antes eu tinha essa cabeça de olhar e falava não sei se o público não gosta, não tem espaço pra tocar… às vezes pode ser falta de planejamento mesmo, ou falta de equipes, ou falta de suporte que esses artistas têm, principalmente dentro de distribuidora.
Tem vontade, tem criatividade, mas hoje dentro da indústria da música em 2024, grandes empresários, grandes gravadoras têm muito dinheiro para investir em um artista que está surgindo, sabe? Isso faz muita diferença, acho que foi algo que mais me surpreendeu, porque no fundo você sabe que é contato, você tem que ter isso. Mas você sabe também que tem muita gente que consegue furar a bolha. E a minha maior missão de tentar descobrir é como essas pessoas furam a bolha.
K: E como que veio essa ideia de fazer o projeto “A Mensagem”?
MP: Bom, essa ideia eu já tinha… sabe quando você tem uma ideia e fica meio cozinhando na sua cabeça? Aí você fala pro amigo pra ver se faz sentido, né? Eu sempre digo: “vou falar alto pra ver se faz sentido, se tá legal”.
E eu tinha muito esse lance de regravação, porque eu sempre ouvi muito samba em casa, fui educada pelo samba com meu pai, minha família. Todos são da música. Eu cresci ouvindo regravações, basicamente, e os sambas são regravações. Cada música que eu ouvia diferente, falava: “nossa, cada música traz um sentimento, trás uma época, uma novidade”. E isso faz o samba ter músicas centenárias, né? Tem músicas que a gente conhece até hoje. Isso é também uma tradição oral, a música é uma oralidade, e isso é muito importante.
E aí eu ficava viajando assim, falando: “nossa, por que que ninguém faz isso no Rap?” Então, pensei, numa época que eu estava viajando muito nos volumes do Espaço Rap (da rádio 105 FM), como foi a timeline, como foi a construção, que era um puta de um show, assim, com uma galera. Foi um momento muito importante para o Rap, nessa ascensão, onde o Rap conseguia reunir vários gêneros, inclusive Rap Gospel. Você conseguia ter essa junção também de várias tribos ali no mesmo lugar. Por isso pensei: “e se regravar um Espaço Rap?”.
No ano passado, comemoramos os 50 anos do Hip-Hop e foi aquele grande marco. Então, pensei: “estou sentindo a necessidade de colocar essa ideia para frente”. Como na Altafonte eu consegui ter um espaço para propor, porque eles são muito abertos mesmo para ideias, eu decidi propor.
No ano passado teve uma convenção em São Paulo com o Nando (Luaces) e a Inma (Grass), que são os fundadores da Altafonte. Quando eles criaram, a Altafonte era um selo pequeno na Espanha, só de Rap, porque sempre foram muito apaixonados por Rap e música urbana… e eles fizeram esse selo porque depois que surgiu, as gravadoras começaram a tomar conta de tudo, e quando o streaming conseguiu dar uma despontada e ter uma perspectiva para outros negócios, eles montaram esse selo para poder distribuir músicas para Spotify e DSPs no geral.
E aí surgiu o selo Boa… e conversando com a CEO da Boa, porque agora as duas empresas se dividiram, ela me incentivou a contar essa ideia para o Nando na convenção. Mas assim, tive que estruturar e apresentar um projeto. Foi aí que eu sentei pensando muito nesse mote dos 50 anos, nessa ideia de regravação, mas para não ficar estreito só ao Espaço Rap, porque também são músicas que acho ser muito da cena de São Paulo, para não ficar só nesse lugar, a ideia foi tentar pegar um pouquinho de cada lugar do Brasil e criar um set list entre 8 e 10 músicas para a gente poder regravar e que tivesse a mensagem, o Rap, a inspiração como o grande centro.
Beleza, pensei, 50 anos de Hip-Hop, o que a gente pode fazer? Pensar nos próximos 50 anos. Como que a gente vai fazer isso? Fazendo perpetuar a mensagem, fazendo perpetuar o que a gente aprendeu, porque “A Mensagem” nasceu de uma grande insatisfação minha também, de olhar o mercado, olhar a cena, ver tudo muito igual, muitas letras iguais, ninguém fazia um som assim por ser original, mas porque bombou a música X, todo mundo faz igual aquela música X, sabe?
Então fica tudo muito igual pra entrar nas charts, pra entrar pra números e tudo mais, e isso acaba dando uma desgastada no Hip-Hop, né? E às vezes eu ia em premiações e eu via assim, ah… prêmio de Hip-Hop do ano. Eu ficava assim: “nossa, gente. Meu Deus! Acaba”. Eu entendo, que é um termo muito presente dentro da indústria da música, mas não concordo com ele…
K: É um termo coringa, né?
MP: É, o que é Hip-Hop? É tipo Black, quando a gente ouvia R&B nos anos 2000… a gente perguntava: “você tá ouvindo o quê? Black!”. E aí, dentro desse universo, eu construí essa história. Então, tipo, beleza, vamos recuperar a mensagem, pensar no futuro, mas para isso, a gente também precisa resgatar os nossos clássicos, porque eles são importantes para a formação de muitas pessoas.
A ideia era que o disco tivesse mensagens que fossem relacionadas ao empoderamento, antidrogas também, porque é uma mensagem muito importante hoje, principalmente num país onde os jovens estão morrendo de fumar vape, né? De fumar vape com 23 anos, estão perdendo o pulmão. E antigamente, a gente ouvia, tipo, mano, não vai pra essas ideias. Esse tipo de coisa não é pra você, baforar lança, sabe?
Pode ter a música de festa, música que vende, música que todo mundo toca em outros lugares, mas pra sociedade, pra população, para o jovem que está ouvindo agora, que mensagem vai ficar para ele, sabe? O que ele vai aprender? E eu me baseei muito no que eu aprendi ouvindo música e todas as pessoas que eu conheço que são envolvidas dentro do Rap aprenderam, né? Leva essa mensagem, essa ideia, esse conselho, tanto é que essas músicas parecem que foram escritas agora, não fica datada.
K: E traz essa mensagem de fato, que a nossa geração meio que foi educada de seguir algumas ideias e deixar outras de lado. E hoje existe uma coisa que tá todo mundo fazendo a mesma coisa, todo mundo falando as mesmas coisas e levando pros mesmos caminhos também. Mas pensando nesse lance de que o Rap também é meio que um gênero, digamos, conservador, nesse sentido de regravações, de ter essa autenticidade na letra, de geralmente não ter alguém que escreve para terceiros…. como que foi pegar essa parada que era original e colocar na mão de outro artista para fazer?
MP: Olha… foi um grande desafio, por isso entrou a direção artística do KL Jay, de ter um cara super experiente também pra escolher as faixas que deveriam ser regravadas, e até muitas faixas são bem lado B, assim, como a do Sistema Negro, Da Guedes também… tipo, a curadoria dele também foi muito fundamental pra poder ter esse aval também, esse peso de ter uma pessoa tão importante no Rap, também falando: “a gente precisa disso, por mais original que a gente seja, as regravações também são fundamentadas e são importantes para o crescimento do gênero, para algo maior”.
No meio desse processo, eu estava ouvindo muito a música do Vapor Barato, da Gal (Costa) e do Rappa, que foram em dois momentos muito diferentes, mas a do Rappa, quando eles regravaram, foi uma regravação que fez muito sentido também para os anos 90. E ali também estava falando da mesma coisa, porque a época estava pedindo, na época também estava acontecendo um momento muito sombrio, e hoje a gente também vive nisso, a gente não pode mascarar, né?
A Polícia de São Paulo está matando geral, matando criança, tipo… cracolândia aí torando. É só andar na rua, você vê a população de rua. E eu ficava pensando: “será que alguém vai escrever sobre isso?” Mas aí, beleza, eu não sou artista, sabe? Eu não sou MC. Se eu fosse MC, talvez eu poderia escrever alguma coisa. Mas será que alguém vai escrever?
Eu pensei: bom, mas regravar aquilo que já foi dito, mas que ficou meio que guardado, que a juventude também não tem acesso, não vai pesquisar, porque é algo que eu vi muito nesse mercado também, que é muito interessante. Nós, geração millennial, acho que dos 30 a mais, a gente tem interesse em ouvir o que os outros estão ouvindo, porque a nossa geração é muito curiosa, a gente quer saber, quer conhecer. Então, a gente pesquisa, mas a geração nova, como tem tudo na mão, não são incentivados a isso, né? Não tem esse incentivo à busca, porque quando o excesso de informação tá ali, às vezes a pessoa fica tipo só recebendo, né? Fica só na inércia, não é ativa.
E aí veio muito desse discurso pra poder amarrar, pra poder também falar pros artistas: cara, eu gostaria de convidar você pra gravar essa música, porque eu acho que você tem muito a ver com essa faixa, sabe? E foi assim… Algumas faixas foram recusadas. Teve artistas que recusaram também, faz parte do processo. E é bom também, eu acho que pra gente aprender. Teve alguns artistas, como o Dexter, por exemplo, que quis indicar alguém pra regravar a faixa dele. E a pessoa se envolver também é muito legal, porque ela às vezes também pensa: se alguém regrava essa minha faixa, quem que seria, sabe?
K: Fica naquela parada sentimental, né? Porque o Rap é muito isso. Tipo, aquela coisa, pô, eu fiz isso, é meu filho, pra quem eu vou confiar para cuidar disso, né? Mas eu achei a escolha dos artistas muito assertivas, assim, porque todos trazem uma verdade naquilo que cantam e que foi escrita por outras pessoas em outros momentos, mas que refletem também esse momento que a gente tá vivendo. Além desses que o Dexter indicou, como foi o processo de escolher esses artistas? Creio que não foi muito fácil também.
MP: Não. Alguns, eu acho que já vinha muito na mente, e o processo foi basicamente assim… a gente fez uma lista das músicas, as 10. Eu e o KL JAY batemos as músicas, e aí a gente foi com a editora para poder fazer a liberação. E aí, conforme a música era liberada, eu ia convidando o artista. Mas isso só acontecia quando a música estava 100% liberada. Foi muito importante ter esse cuidado de falar: “não posso chamar já dez artistas porque não ia funcionar”.
Eu gosto muito desse trabalho manual, de pesquisar, de ir atrás. Também, meu companheiro, o DJ Spanta foi muito meu ouvido, por ter esse conhecimento de música. Eu perguntava: “e se for fulano com ciclano?” Tipo, combina o estilo de produção, estilo de batida? A gente também foi pesquisando muito, fui levando muito pro KL Jay, fui levando pra ele e falando o formato que tinha pensado. Ele falava: “esse artista eu não conheço, mas tudo bem, confio em você, bora nessa”.
E aí foi cada música sendo liberada. Eu acho que é a música mais difícil de pensar e de escolher, foi “Na Locomotiva da Figa” (Clã Nordestino), porque tem uma música para homenagear o Nordeste, teria que ter todas as pessoas de lá. A verba que a gente tinha dentro do projeto não previu uma logística de passagem, a gente então contava muito também com os artistas que tinham agendas em São Paulo e estavam passando por aqui.
A gente conseguiu um estúdio pro Nego Gallo gravar em Fortaleza… o Rapadura tinha uma agenda em São Paulo, e aí quando eu pensei na faixa, falei: “tem que ser pessoas bem comunistas pra cantar, com muita verdade na voz, porque é uma faixa muito pesada, tem muita letra, né, uma faixa muito longa pro padrão dos dias de hoje. Pro beatmaker também, que foi o Dr, Drumah, e tem uma direção musical do Pupilo também, que é um cara que trabalha muito com Rap, mas ele não tá 100% dentro do Rap.
Acho que a construção foi feita muito nesse feeling do que era a música, de pensar muito mesmo que tem que ser um artista muito rap, tem que ser alguém que seja compromisso. Porque eu não queria depois… eu sei que é uma pressão, mas depois de virar um artista e falar: “não canto mais Rap, agora vou cantar Pop”. Porra! Não queria que isso acontecesse….
K: Tem acontecido isso muito, né? [RISADAS]
MP: É, então, dos artistas que eu conheço, eu sou uma pesquisadora musical, gosto de pesquisar, gosto de ir lá e também pedir opinião das pessoas. Então, eu perguntei para alguns amigos sobre beatmaker de Boom Bap em Salvador. Perguntei sobre alguma mina beatmaker também específica em Boom Bap.
E aí eu fui pesquisando também essas informações por meio das pessoas que eu conheço, que conhecem de música também. Isso foi muito importante porque a informação acaba sendo limitada. Como você encontra essas pessoas? Como você conhece? Você entra no Instagram e fica assim: puta, onde eu vou achar o beatmaker? Google: beatmaker, mulheres específicas de Boom Bap. Nossa, não aparece nada. Aparece umas listas de 2013, de pessoas que você não acha mais perfil, que você sabe que está fazendo outras coisas, enfim. É uma pesquisa.
K: Além dos artistas, vocês também trouxeram uns beatmakers e produtores bem pesados, inclusive o Drumah, que eu acho que é um cara muito foda, de Salvador. Fora que vocês encaixaram tanto os artistas locais, de acordo com as regiões dos artistas originais, e também os beatmakers locais da região. Isso que eu achei foda. Mas como foi encontrar esses beatmakers e juntar todo mundo?
MP: Eu acho que vou fazer faixa por faixa porque eu vou lembrando aqui… a primeira faixa que foi liberada foi “Mente Engatilhada”. Eu tinha pensado já numa beatmaker ser uma mulher pra fazer e já tinha pensado na Clara Lima porque eu achava que a Clara Lima já tinha toda a voz e a estética da Dina Di.
E aí como a gente fez uma proposta de projeto de ter um beatmaker e um produtor para trabalhar, porque eles dois especificamente fazem a mesma coisa dentro do estúdio, mas um complementa o outro, dentro desse cenário de regravação, de muitas funções, tanto de gravar a voz, de poder pôr percussão, de finalizar. Então um beatmaker e um produtor ali seria importante até mesmo para ter duas cabeças pensantes e quanto mais gente se apoiando ali também é melhor, né?
Para Mente Engatilhada resolvi chamar o Xis, por ser um cara que já é bem mais experiente, que já conhece bastante o mercado e está trabalhando com umas meninas jovens também, umas meninas que estão super desbravando. Eu falei: “eu acredito nisso, eu banco isso, vamos ver o que acontece”. Deu muito certo.
Então, quando eu vi que rolou na primeira faixa, a forma que a gente estava trabalhando, conseguindo se organizar, explicando o que o beatmaker e o produtor iriam fazer no estúdio, a gente conseguiu encaixar ali uma sinergia para movimentar.
Em “Não seja mais um pilantra”, foi uma que o KL Jay quis escolher ele mesmo. Ele falou: “ah, queria ter uma curadoria minha também, 100% minha”. Pra essa ele chamou o Kamau para fazer o beat e a produção, que tomou conta de tudo. Foi muito bom, muito rápido também a sessão. Chamou o Arnaldo Tifu, Dow Raiz e o Jota Ghetto. Trouxe uma tríade bem sagaz. O próprio KL Jay falou assim: “vou chamar o Jota Ghetto, porque ele rimando parece o Edi Rock”. Então, tipo assim, já estava na mente com essa referência.
A do Da Guedes, “Minha Cultura”, já pensei em chamar o Cabes mesmo, por conhecer também o trabalho dele e ser um cara de Curitiba, e já ter feito bastante trabalho com o pessoal do Sul. O Laudz também, que é um produtor excelente, que também carrega muito essa bandeira. Essas pessoas representam muito as suas cidades também. Então, Zudizilla representa muito a cidade. Karol de Souza também representa muito, e coincidentemente, eles já trabalharam juntos em outros projetos.
Era muito engraçado que cada sessão foi bem particular. As pessoas tinham uma história sobre aquela faixa, tinham uma história com as pessoas que estavam ali gravando. Tipo, a Karol falou: “eu conheci o Cabes quando eu já rimava, ele já ia nos eventos. E aí eu via que ele era uma geração mais nova, mas a gente participou de uma mixtape de Curitiba, todo mundo junto ali, o Laudz também participou”. Então, tipo, são pessoas que já estavam ali dentro da cena, sabe?
Nas outras faixas, as que foram mais para territórios…a do GOG é interpretada pelo Murica e o Iuri Rio Branco faz a produção. Acho que estrategicamente para o projeto teve que ter essa mescla também de produtores que estão um pouco mais na mídia, de pessoas também que têm bastante destaque, e de pessoas que são mais underground.
Então, cada faixa também foi dando uma mesclada nisso, trazendo um intérprete que tem um público, já tem uma caminhada, e até um beatmaker novo. Por exemplo, “É o Crime”, eu trouxe a B no Beat, que é uma beatmaker nova de Uberlândia. Assim, é uma mina que faz o corre, né? Trabalha CLT formal e depois, no final do dia, ela faz o corre do trampo dela, sabe? Então, também uma mina que estava ali na sessão, trabalhou junto com o Iuri Rio Branco, que é um cara que tem feito trabalhos pra Duquesa, Liniker… tá em outro patamar. E o Murica, que é um cara que representa super o Rap de Brasília.
K: Algum artista dos sons originais participou nesse processo de gravação?
MP: Não. Nenhum momento. Até tinha conversado com o KL Jay pra chamar, mas ele falou que era melhor não, porque é muita pressão. E é realmente…
K: Como é uma recriação, aí pode ser também que o autor da obra queira fazer, direcionar do jeito que ele acha melhor, né? Então, é uma coisa que pode fugir do controle. Mas o que eu acho legal na escolha das músicas é que mostra também que nos anos 90, 2000, o Rap tinha uma diversidade muito grande de temas e que cada um falava de uma coisa e no final todo mundo se complementava. Falava sobre drogas, sobre a violência, mas também tinha sobre festa e tinha sobre outras coisas. Vocês pensaram nessas ideias também ou a escolha foi meio que sem querer pensar nesse direcionamento?
MP: A gente passou por essa também, pra mostrar e dar uma reforçada, falando que sim, tinha uma diversidade. Por muito tempo o Rap dos anos 90, 2000 caiu muito naquela caixa de que era só violência, só sangue, era só tristeza, era só música de bandido. Então, não tinha nenhuma ideia. Mas assim na década de 90, na virada do século, teve uma vasta diversidade, tanto musical quanto de temas, e foi muito importante ter colocado isso dentro do projeto.
E acho que, como eu usei as palavras-chaves para poder criar… tipo, beleza, vamos focar, mas no que a gente vai focar? Porque a gente pode focar em muitos gêneros, pode focar num gênero muito mais underground, numa galera que era bem mais do underground, pode entrar nesse lugar que era tipo mainstream, Sabotage, Racionais, que a maioria das pessoas conhece, Marcelo D2… aconteceu de uma forma muito natural porque fomos liberando as músicas e teve umas que a gente queria, mas não deu certo, tinha autor duplicado, ou a gente não achava de jeito nenhum aquele autor para fazer autorização, ou o autor negava. E aí a gente foi costurando ali, quando a gente viu, tipo, pô, formou. É isso.
K: Vocês já tinham uma listona e foi meio que tirando aquelas que não iam ficar, porque tem alguns artistas que, como você disse, é meio lado B ali. Por exemplo, a do Sistema Negro, geralmente a galera pensa em “Verão na VR” e o Dexter também, “Oitavo Anjo”. Também foi meio que proposital isso, de não trazer aquelas que todo mundo conhece. Teve essa ideia também de não trazer aquelas que eram as mais conhecidas?
MP: Sim, eu acho que teve muito essa jogada do KL Jay. Quando eu falei: “vamos fazer Sistema Negro, Verão na VR”. Ele respondeu: não, vai ser “Nós Somos Pesados”. Vamos fazer um lado B total. Eu acho que muito também isso foi bom no intuito da gente valorizar o catálogo inteiro do artista, entender que essa música, às vezes, não teve tanta atenção, mas olhando assim é uma música legal.
Eu fiz uma listona assim, a princípio, depois eu fui somando mais nomes que a gente foi pensando ali na hora. Mas são muitos, né? A minha vontade é fazer uma “A Mensagem” volume 2, se a gente tiver condições. Eu acho que vale muito ter… Mas crescer, né? É também importante mostrar para os artistas que a gente cuida direitinho do projeto também. Não tínhamos a intenção de fazer um projeto só para números.
Quando eu falo que foi muito manual, foi muito nisso, de conversar com os artistas, de ligar, de falar assim: “cara, eu sou uma pessoa do Rap, eu penso da mesma forma que você”. Acho que isso também foi muito importante ter esse tete a tete, porque a gente conseguiu crescer e se desenvolver sabendo onde chegar, onde pisar e com quem conversar. Então, beleza, essa pessoa não se sente confortável, não quer liberar. Beleza, a gente não libera. Respeitamos também a ideia… tem faixas que eu acho que é realmente complicado. Acho que até mesmo dos artistas, tipo olhar e pensar, falar: “nossa, não quero que minha faixa seja regravada”.
K: Você falou da possibilidade de ter um segundo volume… acho que com a repercussão e a entrega, que é a curadoria, de ser pessoas que estão envolvidas no Rap, chama atenção para que outros artistas liberem suas músicas. É também uma forma de levar essa mensagem para um outro público, para uma outra geração. Falando da capa, como foi pensado o conceito?
MP: Para a capa, eu tinha pensado em chamar uma pessoa do grafite mesmo pra poder criar uma letra com referências dos grafites feitos no trem também. E aí fiz minha consultoria com o DJ Spanta. Ele conhece muito também da galera desse universo do grafite e a gente trocou ideia e aí eu conheci a JAKE, que é uma mina também super do underground, que gosta de música, gosta de capas, de colecionar vinis também. Então é uma pessoa que já tem essa visão.
Eu expliquei o conceito, que a ideia central do projeto seria a base do álbum “Na Batida”, do KL Jay, que é uma mixtape, que simula um programa de rádio. Se tivesse mais tempo e mais grana, eu queria que as faixas tivessem interlocuções como se você estivesse ouvindo um programa de rádio e navegando ali, tipo essa aqui é do Fulano, lançada não sei o quê. Mas a gente fez o faixa-faixa para entrar nisso, para poder contemplar essas informações, mas eu gostaria que tivesse sido dessa forma.
E aí eu falei, tem esse disco do KL, eu gostaria que tivesse também essas referências dos elementos do Hip-Hop também, porque é muito importante. O Rap não nasceu sozinho, o MC na verdade, foi o último a ganhar destaque.
K: Veio muito tempo depois…
MP: Exatamente. Antes o MC ficava só no hey, hô! (risadas) E aí, é importante a gente também levar a cultura, por mais que o projeto que eu estou fazendo seja música, e eu não vou conseguir fazer um videoclipe com o B-Boy, não vou conseguir fazer conseguir colocar todo mundo junto dentro do mesmo projeto, mas também tem essa representatividade na capa.
Então, a partir dessa referência, ela pegou também a referência daquele disco do Pedro Sorongo (Krishnanda), que tem um gorila no centro dentro de uma espécie de círculo do zodíaco, com uma timeline de várias coisas. E pegou muito dessa ideia, porque a capa do KL Jay, como um relógio, né? Tipo, marcando as horas.
A cor dourada, do ouro, vem dos egípcios. Trazendo um rádio na frente… a gente fez várias montagens de capa, mas o que ficou mesmo foi a do rádio, que foi muito legal o que o KL falou: “o rádio todo mundo do Hip-Hop identifica, é o que vai dissipar, é o que o grafiteiro escuta pra pintar, é o que o DJ tá ouvindo música nova, é o que a MC também vai cantar a música, é o B-Boy tá usando o rádio pra dançar”. Então, a gente fechou nesse conceito e foi criado um alfabeto também para cada faixa, para a gente conseguir criar capa faixa por faixa também, um alfabeto exclusivo ali e ter essa identidade.
K: Se fosse pra escolher uma faixa preferida nesse disco, qual seria? Pergunta difícil, né?
MP: Nossa, muito… É difícil. Eu fiquei muito emocionada com Saudades Mil, porque acho que foi uma das faixas que foi difícil de fazer, porque tem um sample muito marcante, e a gente também não quis entrar nessa de repetir o sample, porque isso poderia acarretar outros problemas também. Então, a Rafa Jazz foi muito sagaz nisso e… acho que é uma faixa muito impactante, porque eu ouvi muito ela quando era criança.
Minha mãe ama essa música, e eu lembro muito dela, eu lembro muito da família, Natal, que é tipo, essa música é faixa de fim de ano, né? E eu vi ela ali com o Rael regravando, o Kayode regravando, parecia que a faixa tava sendo feita de novo, né? Porque o Rael, entregou muito. Traz aquela nostalgia de ouvir a faixa de novo, aí você fala, não, vou ouvir agora a original.
“Nós Somos Pesados”, acho que foi uma das que eu mais gostei, que mudou muito. Foi a faixa mais antiga que a gente regravou. Ela é de 93. Ela ganhou uma vida assim, a Stephanie gravando também foi muito potente. Foi olhar e falar: “caralho, é a mulher ali, tá gravando na minha frente”. Tipo, caramba, e ela entregou muito, era uma faixa também que ela tinha uma ligação muito especial porque o irmão dela ouvia bastante. Eu gosto de todas as faixas, mas por ter participado desses processos mais bem pessoais, de entender a ligação daquela pessoa, eu fui ficando mais fã.
K: Essa é uma contribuição para o Hip-Hop, para manter também essa essência e também para valorizar aqueles que vieram antes, né? Se a gente tem uma cena que conseguiu furar a bolha e chega no mainstream, teve uma galera que cortou aquele mato ali, que carpiu terreno pra essa galera estar hoje aí….
MP: Também é uma forma de homenagear quem tá vivo também, né? Isso é muito importante. Dar as glórias em vida, porque isso faz muita diferença, né? A gente tem esse costume ruim de deixar póstumo, de ficar ali no póstumo. Mas assim, as pessoas estão vivas, as pessoas estão fazendo ali, estão na ativa. Fico muito feliz mesmo. Quero que a gente consiga viabilizar uma mensagem dois e levar isso para outros segmentos.
Texto por: Adailton Moura