Foto: Anitta no clipe de "Girl From Rio"

“Você venceu, Anitta”, e mais quem?

Como o Funk vem ganhando visibilidade no cenário internacional e quem está por trás disso?

Funk como subgênero de “Música Urbana” no Grammy Latino

“Eu lembro do Caetano me entregar um prêmio / De melhor do nordeste / O que diz sobre isso / Porque não tinha uma categoria pro sul / Então era tipo / Esmola pra segunda divisão, tru”, fazendo um paralelo com os versos de Don L: o que é “Música Urbana”? Nesse contexto, é uma categoria do Grammy Latino que inclui como subgêneros Rap, Reggaeton, R&B, Trap, Dancehall, etc; mas já que “urbano” nada mais é do que uma palavra que tem origem no Latim “urbanus” que significa “pertencente à cidade”, seria essa mais uma espécie de “esmola pra segunda divisão” da música?

É importante refletir por que Pop, Rock, Jazz e outros sons possuem suas próprias categorias enquanto ritmos tão singulares foram jogados todos no mesmo balaio. O que eles têm em comum? É evidente que o termo “urbano” é usado aqui, e também em outros contextos, como forma de associação de diferentes elementos remetentes à cultura preta. Em 2020, essa discussão entrou em nas redes sociais por impulsionamento do movimento Black Lives Matter e se tornou pauta de uma importante matéria construída com a colaboração de diversos pesquisadores e ativistas que buscaram na história elementos para explicar como categorias “urbanas” criam barreiras para músicas e danças negras e perpetuam o racismo.

Dada a contextualização racista da categoria, vamos aos fatos: a Academia Latina da Gravação, responsável pelo Grammy Latino, incluiu mais um som de preto como subgênero da categoria urbana – o “Funk brasileiro” – causando no dia 18 de julho uma repercussão enorme nas redes sociais, e a frase “Você venceu, Anitta” foi parar nos trending topics do Twitter Brasil. Há quem diga que o acontecimento não foi de fato uma conquista, e sim uma tentativa da organização de correr atrás do tempo perdido, atrasada no mínimo dois anos na tentativa de dar visibilidade continental a um gênero já propagado em escalas mundiais.

Independentemente da real motivação para a atualização dos conceitos da premiação latina, foi curiosa a rapidez com que atrelaram a vitória à Anitta, apesar do Funk ser um ritmo que luta contra o preconceito e a marginalização muito antes até do nascimento de Larissa Machado.

A carreira internacional de Anitta

Desde 2014, Anitta já deixava clara a sua intenção de embarcar em carreira internacional. O objetivo foi muito bem planejado e teve sua execução iniciada ainda no mesmo ano, com seu primeiro lançamento em língua estrangeira, uma versão de “Zen” – em parceria com cantor espanhol Rasel.

Anos mais tarde, em entrevista ao Correio Braziliense, Anitta detalhou um pouco do planejamento para consolidar sua carreira fora do Brasil. Além de lançar muitas músicas em parceria com artistas internacionais e misturar o Funk a outros ritmos, Larissa também investiu em estudos sobre tendências do mercado fonográfico – como o destaque da música latina, e por isso a escolha do Reggaeton para o lançamento de “Paradinha” –, e aplicou inclusive estratégias de marketing (como cobranding, no Projeto CheckMate, e storytelling, centrado no discurso do empoderamento feminino).

Fora dos palcos Anitta também não deixou barato, sempre foi assídua defensora do Funk e investiu bastante no rompimento de paradigmas e preconceitos que envolvem o gênero.  Foi o que ela fez no Brazil Conference, evento organizado pela Universidade de Harvard e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) nos Estados Unidos. Por ser frequentemente associado a drogas e violência, Anitta explica o teor do movimento sociocultural musicalizado no Funk: é o retrato da realidade de muitas pessoas, artistas e ouvintes; e crava a necessidade do investimento em educação sem tirar a responsabilidade governamental para desenvolvimento social justo.

Antes de cantar, eu nunca tinha ido à zona sul do Rio de Janeiro. Então é muito difícil você cantar o ‘barquinho vai, a tardinha cai’ (referência à Bossa Nova) se você nunca viu essas coisas. O funkeiro canta a realidade dele. Se ele acorda, abre a janela e vê gente armada e se drogando, gente se prostituindo, essa é a realidade dele. Para mudar as letras do Funk, você tem que mudar antes a realidade de quem está naquela área.

fala reproduzida pela BBC Brasil.

Direto de Honório Gurgel, a poderosa fez jus ao apelido.

Em versão 'business', Anitta rouba a cena em megaevento sobre Brasil em  Harvard - BBC News Brasil
Anitta – Distribuição: BBC News

De 2010 a 2021, Anitta protagonizou mais de 18 feats internacionais e 20 nacionais (sem contar as participações como artista convidada, que somam mais de 35 gravações); interpretou canções em 5 idiomas; performou versatilidade de ritmos e estilos; compõe a bancada do Grammy Latino como membro votante — conquista anunciada dias após a inclusão do Funk nas categorias musicais urbanas — e foi eleita pela Forbes como um dos maiores nomes da indústria musical atualmente. Veja abaixo os passos que intermediaram a mudança de MC Anitta para Girl From Rio.

E mais quem?

Apesar do incontestável sucesso de sua carreira, Anitta já se envolveu em mais de uma polêmica sobre tomar para si o pioneirismo que não necessariamente lhe pertencia, como o famoso quadradinho (cujo berço muitas vezes é atribuído à Beyoncé) e o movimento Funk-Rave — bastante popularizado pelo DJ GBR, mas em curso desde que produtores cariocas, como Rennan da Penha e DJ Polyvox, passaram a inovar a batida do funk em 150 bpm.

Será que com o aumento da visibilidade e reconhecimento internacional do Funk aconteceu algo parecido? Agradeceram à Anitta, mas a lista de quem está nessa luta há anos é grande, vamos lá!

Ainda no início dos anos 2000, Deize Tigrona, funkeira carioca produzida pelo DJ Marlboro, teve sua música “Injeção” sampleada em “Bucky Done Gun” da cantora britânica M.I.A., responsável por ajudar a divulgar o Funk brasileiro nos Estados Unidos e na Europa junto com seu namorado americano Diplo, produtor do documentário “Favela on Blast” em 2008.

Um pouco mais tarde, já em 2013, quem não se lembra da euforia de ver Beyoncé e seus bailarinos coreografando “Passinho do Volante”, sucesso do trio Os Hawaianos, durante o Rock in Rio? Ou então de Jack Ü (formado por Skrillex e Diplo) tocando “Baile de Favela” de MC João no Lollapalooza de 2016, na mesma noite em que convidaram MC Bin Laden para subir ao palco e cantar o sucesso “Tá tranquilo, Tá favorável”?

Nem mesmo Madonna resistiu ao nosso Funk e em 2017 postou no Instagram um vídeo de suas filhas ouvindo e cantando “Olha a Explosão” de Mc Kevinho em 2017, e dois anos mais tarde deixa de ser apenas ouvinte e chega a gravar uma música com Anitta, “Faz Gostoso”. Sinal dado, o Funk estava chegando aos ouvidos de grandes nomes da indústria musical mundial.

Em 2014, MC Guimê lançou o som “Brazil We Flexing”, contando com a participação do rapper estadunidense Soulja Boy. Em dois dias o clipe bateu a marca de 1 milhão de visualizações no YouTube e consagrou o sucesso da parceria.

Em 2017, MC Fioti e KondZilla lançam “Bum Bum Tam Tam”, sucesso internacional inquestionável, cujo clipe emplacou de forma até então inédita a marca de um artista brasileiro com um bilhão de visualizações no YouTube e ganhou um remix internacional com participação de J Balvin, Future, Stefflon Don e Juan Magan. Foi o Funk mais ouvido internacionalmente no Spotify em 2018, em um top 10 que também engloba MC Kevinho, Anitta, MC Jhowzinho, MC Kadinho, Nego do Borel e MC G15.

Além de MCs, produtores possuem grande triunfo na linha de frente do cenário internacional do Funk brasileiro. Papatinho conheceu Snoop Dogg em Los Angeles e mais tarde lançaram “Onda Diferente” com Anitta e Ludmila; além dessa parceria, em 2020 se une com Will.i.am, membro do Black Eyed Peas e Kevin O Chris para o lançamento de “5 Estrelas”.

Outro nome que merece, e deve, ser lembrado quando se trata da internacionalização do Funk é Konrad Dantas, mais conhecido por KondZilla, produtor do maior canal do YouTube do Brasil e da América Latina. Kevinho, G15, Kekel, Fioti são quatro dos artistas que emplacaram sucessos fora do Brasil e todos com apoio de KondZilla, o qual tem inclusive contrato de distribuição internacional com a Universal Music Publishing Group (UMPG) desde 2019.

Kevin O Chris, antes de cantar junto de Will.i.am na produção de Papatinho, já tinha seu trabalho exaltado no exterior em 2019. O rapper Drake gravou um remix do hit “Ela É do Tipo”, arranhando até um português.

2021, apesar de ser um ano atípico – e de pouca expectativa – para a indústria musical por conta dos reflexos da pandemia nos eventos culturais, acabou servindo de palco para, no mínimo, outras duas grandes conquistas para a visibilidade do nosso Funk. Cardi B, grande entusiasta e fã inegável do nosso som de preto e de favelado, apresentou um remix de “Wap” de Pedro Sampaio no Grammy. Tivemos também a Rainha do Fluxo, MC Dricka, indicada ao BET Awards como Melhor Novidade Internacional, saindo direto da periferia de São Paulo para um dos telões mais famosos do mundo, na Times Square.

Acho que ficou claro que o reconhecimento do Funk não pode ser atribuído a apenas uma artista. O progresso é resultado do trabalho de muita gente, que desde os anos 60/70 lutam pelo direito de existir, criar e curtir. Um gênero musical nascido nas comunidades cariocas, estigmatizado, frequentemente repreendido e quase criminalizado, o Funk vem fazendo sua história. Apesar de ainda causar muito incômodo, é incontestável que a trajetória do nosso batidão vem cada vez mais se consolidando em uma narrativa de sucesso, ganhando espaço, conquistando respeito e visibilidade, dentro e fora do Brasil. Vitória para todos que vivem esse som. Já dizia KondZilla, a favela venceu.

Texto de Elisa Rinco

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