A virada de século trouxe grandes avanços quando nós pensamos em música. A internet trouxe uma relativa democratização do conhecimento e com isso milhares de pessoas que queriam aprender algo relacionado a música puderam aprender e produzir de outras formas.
Fato é que a forma que consumimos música mudou bastante. E uma das formas que acabaram perdendo popularidade ao longo dos anos foram os programas de rádio. Afinal, a grande maioria dos ouvintes está mais interessada em ouvir a música do artista que gosta, na hora que quiser. Mas consumir música é mais que isso.
Gosto de pensar na experiência de consumir música como uma troca que vai além daquela entre artista e ouvinte. Ouvir música é compartilhar com o outro, mostrar o som daquele artista que achamos que vai estourar ou aquela playlist que fizemos com tanto carinho. E por que não também descolar qual vai ser a próxima hype?
O mercado musical também passou por uma grande mudança. A chegada do mp3, dos serviços de streaming e plataformas como o bandcamp, fez com que a dinâmica tradicional sofresse, levando muitos selos a quebrarem ou reverem todo o seu modelo de negócio, já que agora teoricamente um artista poderia ter seu som ouvido por qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.
Joe Kay
Desde criança Joe Kay aprendeu a ouvir de tudo: enquanto a mãe ouvia Sade, DMX, Jay-Z e Rage Against the Machine, o pai era fã de Erykah Badu. Já o tio, gostava de House Music. Sendo uma criança dos anos 90, para Kay conseguir ouvir as músicas que gostava era necessário ou ter um vinil do artista ou então gravar a música em fita cassete quando ela tocasse no rádio. E foi ouvindo antigos programas de rádio e gravando suas músicas favoritas que Joe começou a fazer suas primeiras mixtapes.
Quando Joe tinha 11 anos, um amigo da família que trabalhava no marketing da Universal começou a levá-lo em algumas das visitas que fazia às rádios de Los Angeles para divulgar os novos trabalhos que a gravadora lançava, então desde cedo Kay começou a entender a dinâmica de como um selo funcionava.
Já no colégio, Kay começou a distribuir suas mixtapes em CD para os amigos e logo ficou conhecido como o garoto que sempre tinha novos sons. Em uma entrevista para a NPR, Joe conta que foi a partir deste hobby que ele começou a sentir que gostava da dinâmica de levar músicas novas para outras pessoas ao mesmo tempo em que melhorava sua curadoria.
Em 2017 Joe estava aprendendo a discotecar e decidiu transformar o hobby de gravar mixtapes em algo que impactasse mais pessoas. Foi assim que o podcast Ill Vibes surgiu, gravado na garagem da avó de Kay. Já no primeiro ano, Joe tinha 37 inscritos no seu podcast (na época podcasts eram ouvidos via RSS Feed). Vendo o relativo sucesso do podcast, Kay resolveu investir e comprou um microfone de 20 dólares para que pudesse falar durante suas mixes e, assim como os programas que ouvia quando criança, poder comentar sobre os artistas que estavam por trás dos sons que ele tocava.
Andre Power estava entre os ouvintes do podcast e, após ouvir um dos programas de Kay, entrou em contato com o mesmo e acabou ajudando-o a conseguir uma apresentação num evento chamado Art In The Park, que acabou despertando a atenção de uma rádio local, onde foi entrevistado.
Com esse formato de programa de rádio, Kay – que acabara de ser transferido para a Universidade da Califórnia – fez com que o seu show fosse aceito na programação da rádio da universidade, a KBeach, e em 24 de janeiro de 2011 estreava a Soulection Radio (Show #1), com uma curadoria de 29 artistas de todas as partes do globo.
A Soulection
Hoje, 10 anos depois, a Soulection tornou-se um programa de rádio, coletivo de DJs e artistas visuais, gravadora, marca de roupas e uma festa, que roda o mundo projetando os artistas e DJs que fazem parte do coletivo. Em uma entrevista para a Vice, Joe Kay diz dever todo o sucesso à comunidade de fãs e membros.
É sempre recomendação. Outros artistas do nosso time apresentam novos artistas. Somos todos amigos de amigos e rola uma confiança muito grande, muita afinidade e, se algum artista chega com uma ideia ou dica, nós levamos ela muito a sério. Se alguém recomenda um artista, é porque ele se importa e não tá tentando desperdiçar nosso tempo.
Em abril de 2011, Ta-Ku, um produtor australiano que era ouvinte do show, entrou em contato com a Soulection com uma ideia: ele queria poder ajudar as vítimas do tsunami que havia atingido o Japão. Nessa conversa, Ta-Ku disse que havia tido algumas ideias pra beats nas últimas 24h e sugeriu que todo a arrecadação em cima dos beats fossem doadas para a causa. Foi assim que 24, o segundo lançamento do selo foi lançado gratuitamente no BandCamp com a tag “dê o seu preço” e os produtores do show se deram conta de que a marca virou global.
Nos dois anos seguintes, a audiência da Soulection continuou crescendo organicamente e a curadoria do programa de rádio revelou alguns produtores promissores, como Mr. Carmack. Durante esse período, o selo lançou 25 álbuns de produtores que hoje fazem parte do coletivo. Nomes como Ta-ku, Abjo, Evil Needle, Sango, Lakim, J-Louis, Esta e Atu.
Em 2013, North, o terceiro álbum do Sango pelo selo, teve uma crítica assinada pela Pitchfork, ganhando atenção da mídia especializada. A partir desse ponto, o coletivo viu que tinha alcançado outro patamar e começou a focar mais na qualidade dos lançamentos que faziam. No ano seguinte, devido ao sucesso que o show fazia no Reino Unido, foram chamados pela Rinse FM – rádio londrina famosa pelos seus podcasts de Grime, Garage e Dubstep – para sediarem o programa de lá, e dessa parceria saíram 24 episódios.
O ano é 2015, e de volta aos EUA a Soulection fecha parceria com a Red Bull, passando a usar os estúdios da marca em Los Angeles. Porem, a Beats 1 – radio sediada pela Apple – estava buscando reformular o seu formato de web rádio, ampliando sua oferta de shows semanais. Dessa forma, a Soulection deixa a Red Bull, no mês de julho, com apenas 15 programas lançados por lá, para fazer parte da programação da Beats 1 ao lado de nomes como Dr. Dre, Pharrell, Elton John e Drake.
Durante os mais de 500 episódios lançados pela Soulection, grandes nomes do Hip-Hop passaram por lá, trazendo sua própria curadoria e sendo entrevistados por Joe Kay. G-Eazy, DJ Jazzy Jeff, Mac Miller, Daniel Caesar e Jhené Aiko são alguns nomes que passaram pelos estúdios da Soulection. Além de Anderson .Paak e Kaytranada, produtor que ganhou 3 Grammys em 2021.
O Som do Amanhã
A curadoria da Soulection não tem um gênero específico. Sobre o logo The Sound of Tomorrow (o som do amanhã, em tradução livre) seus programas de rádio e artistas orbitam em torno do Hip-Hop dos anos 90 e 2000, R&B e Jazz em montagens que trazem graves marcantes, sintetizadores e samples de vocais para criar uma atmosfera quase introspectiva. Sempre relaxante e envolvente, ou, como Joe Kay gosta de falar, “pérolas esquecidas e músicas atemporais”.
Esse foco em manter a mente aberta e ter suas curadorias quase que exclusivamente focadas em plataformas de streaming como Soundcloud e Bandcamp, além de programas anuais onde os ouvintes é que fazem a seleção das músicas, fez com que a Soulection criasse uma comunidade ao redor de si. Sempre focada em aprender, melhorar e compartilhar.
E foi dessa pegada de curadoria e compartilhamento que a Soulection chegou em artistas brasileiros como os paulistanos do Deekapz (na época ainda com o antigo vulgo, DKVPZ), que lançaram um EP pelo selo. Além disso, também chegaram no mineiro VHOOR, que lançou o EP Acima com o Sango, além de assinar uma faixa no Da Rocinha 4.
Nós do Kalamidade chamamos o VHOOR para trocar uma ideia sobre esse contato com a Soulection.
Kalamidade: Queria saber, como aconteceu o contato com a galera da Soulection? Muita gente acabou conhecendo seus trampos e do Deekapz, por exemplo, ouvindo os shows semanais deles. A curadoria deles acaba trazendo muita visibilidade pra quem tá criando coisa nova. Como rolou esse contato?
VHOOR: O contato com a Soulection aconteceu naturalmente. Joe Kay pesquisa bastante sobre a música brasileira e os beatmakers brasileiros no SoundCloud. Eu era um fã real da rádio, acompanhava sempre.
O SoundCloud possibilita, por meio das republicações, que o som chegue em pessoas que a gente admira muito. A galera da Soulection é um exemplo disso, o taggeamento e todo o sistema de gravadoras independentes dentro da plataforma também ajudam muito.
K: E você acha que esse contato com eles influenciou a sua forma de pensar sua produção musical? Tipo, você produz Chill Baile, produziu dois álbuns de Drill e Grime, tem EP de Boogie, Funk. Você busca produzir de tudo e tocar de tudo nos seus sets?
V: Sim, principalmente no quesito de ser eclético em relação ao que eu produzo. Hoje eu tento não me prender em um estilo único, mas experimentar um pouquinho de cada coisa que eu ouço e gosto. Acho que isso foi uma cultura que eu absorvi muito da Soulection.
Hoje a Soulection possui mais de 500 shows online e mais de 70% deles com as playlists devidamente creditadas aos artistas e produtores. Monstros sagrados da comunidade SoundCloud que fazem escola da boa curadoria e da importância de cultivar uma cena musical online.