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Lançamento do primeiro disco do Cabes “Todo Dia é Assim” 2009

Hip-Hop em CWB – Pelos olhos de quem aprendeu e pavimentou caminhos

Pegamos um voo para Curitiba pra falar do surgimento e desenvolvimento da cena e como ela atravessa a caminhada de um talentosíssimo produtor e MC da região. Ricardo Pires, também conhecido como CABÊS, nasceu em Curitiba e atualmente mora em São Paulo, caminhando pela estrada do Hip-Hop há mais de 20 anos.

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Foto: Andrea Dosouto

Como rapper, lançou 4 discos solos: Todo Dia É Assim (2009), Pra Onde As Pessoas Vão (2012), EP Revolução Constante Evolução Permanente (2013), EP O Tempo é Agora (2017), além de diversos singles e participações.

Como produtor musical, montou seu estúdio Track Cheio em 2004 e entre gravações, produções e mixagens, já trabalhou com mais de 500 artistas, grandes nomes do Rap e R&B brasileiro: Rapadura, Dow Raiz, Max B.O, Altniss, Matéria Prima, Vanessa Jackson, Lívia Cruz, Zudizilla, Iky Castilho, Coruja BC1, Karol Conká, Contra Fluxo, Alienação Afrofuturista, Yago Opróprio, Karol de Souza entre outros e em 2022 lançou um EP como produtor musical chamado “Retratos Vol.1”, reunindo diversos cantores de R&B.

No ano passado nos presenteou com os 3 primeiros singles do seu novo trabalho intitulados “Apurando”, “Derrubando Mitos” e “Ruas Sem Dono” antecipando o que vem em seu novo disco “CICLOS”, em preparação para 2024.

CABÊS é uma grande referência e colou com nóiz pra desenrolar um papo massa sobre o início da sua construção no Hip-Hop em Curitiba e seu desenvolvimento, enquanto também se vê como apaixonado e participante dela.

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                Graffiti por Dumeen e Botreze

Aqui no Kalamidade já falamos um pouco sobre Hip-Hop em Curitiba em nosso podcast com o mestre DJ Baqueta e você ainda pode ouvir essa troca lá no teu streaming favorito!

Foto: Acervo CABÊS

Kalamidade: A cena em Curitiba nasce a partir da dança, na marquise do Shopping Itália. A partir desse crescimento, como aconteceu o desenvolvimento dos outros elementos? E de que forma essa cultura chegou e se desenvolveu na tua vida?

CABÊS: A cena já acontecia mas se solidificou de fato ali nos encontros que aconteciam no piso do shopping Itália, porém sei que desde 1985 JÁ existia gente que tava se movimentando pela cultura. A cidade, apesar de ser uma capital, tem esse ar de interior, então o Hip-Hop sempre foi nossa “contra-cultura”, um grito de expressão da juventude curitibana nas artes, seja no pixo, graffiti, skate, atividades que sempre existiram pelas ruas da cidade.

Já existiam grupos de Rap na cidade como Comunidade Racional, Dozeaba, Mocambo, Blackout, Magú, entre outros. Eu já andava de skate ali por 97, 98, quando comecei a ver pixações e graffitis perto da praça de skate que andava mais, a Praça do Ambiental e arredores, e fui entendendo que aquilo era uma expressão artística ilegal, mas que falava muito com quem estava por ali dando seu rolê.

Nessa época já aconteciam eventos de Hip-Hop mesmo, com os 4 elementos na cidade, tanto na região central quanto nas regiões mais afastadas. Foi na Galeria Mounif Tacla, na loja Spin, Aerosol, Porte Ilegal e no piso do Shopping Itália, entre outros lugares, que conheci o Berquelei, DJ Bk12, Marcio Mco, Diogo Aze, Dan TAC, (todos figuras ativas até hoje) que me levaram a eventos que os DJs tocavam ou que reuniam de fato os 4 elementos.

Esses eventos rolavam tanto no centro quanto nos bairros, como 66 Bar, Birinites, Cronic, Clandestino, Era Só o que Faltava, El Mago, Escadão do largo, além daqueles eventos de bairros afastados em praça pública onde o pessoal estava fazendo graffiti, várias rodas de boys e no caminhão de som os caras rimando junto com um DJ, esses eventos reuniam mais de 500 pessoas numa tarde de domingo.

A gente ia na loja da Spin que era a loja do Jonathan o Gralha, onde o DJ Primo levava os equipas dele na loja e fica a tarde lá tocando, às vezes a gente passava o dia inteiro na loja, só pra ficar vendo ele praticar e ficar resenhando sobre Rap e absorvendo informação.

Ali foi o despertar de algo maior pra mim, onde não importava de onde ou quem você era, você sintonizava com o que estava acontecendo ali e acabava fazendo parte. Mesmo sem conhecer ninguém, de alguma forma, eu me sentia acolhido. Foi em eventos assim que eu senti que a “magia” do Hip-Hop foi me envolvendo.

Já não era mais sobre apenas andar de skate e riscar os muros, e sim fazer algo pra agregar naquele grande movimento de pessoas que estavam buscando evoluir naquela arte que faziam e transmitir o conhecimento que estava adquirindo. Me senti parte de algo maior e que não era apenas sobre mim, mas sobre um coletivo, uma comunidade de fato.

Comecei nessa época (1999 e 2000) a fazer graffiti e também dançar break. Logo depois comecei a “rimar” com amigos e posteriormente me interessar em como eram feitas aquelas músicas e aquelas batidas que o pessoal rimava em cima. Estava juntando dinheiro pra comprar um skate novo, quando o skate velho quebrou, ao invés de comprar um novo shape, acabei comprando um microfone de karaokê, e acho que foi aí que começou meu processo na música e na produção musical.

Kalamidade: O que, pra você, faz da cena de Curitiba algo único? Qual ou quais motivos fazem esse movimento ser tão poderoso, principalmente na década de 90 e 2000, com reconhecimento em território nacional, apesar de estarmos em uma época onde a comunicação e troca de informação era mais difícil?

CABÊS: Nessa época, tinham poucas pessoas em Curitiba que produziam. Já existiam vários DJs, mas poucos produtores e os que existiam não tinham muito acesso ou espaço para troca de informações. Uma das pessoas que me ajudou foi DJ Bk12, passou o programa FruityLoops 2 (programa de fazer batidas) pro meu irmão mais velho e aí começamos a explorar essa ideia de produzir música.

Descobri que haviam outras pessoas no meu colégio que também estavam nesse mesmo lugar “solitário” de como fazer beats, e aí começamos a nos reunir para troca dessas informações. Eu, Nave, Cadelis, Pródigo, Peen, Will, Bigue, Cilho entre outros, são algumas dessas pessoas que começaram a se encontrar e trocar figurinhas sobre o que tinham aprendido sozinho. Nessa época o Nairobi, Leo Spektrum, DJ Ploc – que já frequentavam a cena do Hip-Hop – iam na frente do nosso colégio na saída e assim também trocavam muita informação com a gente.

Acho que esse núcleo foi se fortalecendo, pois, como nos sentíamos um pouco “fora” de uma cena mais antiga que já existia, a nossa única fonte de informação era nós mesmos, então entre a gente havia muita cooperação. O que um aprendia, passava pro outro e vice-versa. Isso foi muito importante pois fortaleceu nossos laços nessa troca e nos fez crescer juntos.

Dario Beats surgiu na época e também se conectou com a gente, ele que já era um grande colecionador de música acabou sendo uma pessoa que trouxe muito conhecimento e fortaleceu ainda mais essa união que estava surgindo, juntamente com o Laudz que era bem novo na época mas se conectou muito forte com todos pela sua vontade e disposição.

Foi se formando um time ali onde havia muita troca e vontade de aprender. DJ Jeff Bass, Hurakán, Nel Sentimentum. Tinha uma galera da zona oeste que também chegou junto, Quadrado, Destro, Adelajah, grupo Mentekpta entre outros.

Em 2003 teve uma festa chamada “É Isso” organizada pelo Will Cafuzo onde foi um primeiro evento que reuniu a gente em cima do palco, no Gaudi Bar. Acho que essa foi a fagulha inicial pra gente começar a levar mais a sério o que a gente estava realizando.

Como a gente se reunia pra ouvir música, produzir e trocar ideia lá em casa, no fim de 2004 surgiu o estúdio Track Cheio, onde de fato comecei a gravar mais pessoas lá e me aprimorar na produção musical e na questão de mixagem e masterização. E foi em 2006 que me juntei com o DJ Sonik – pupilo de DJ Primo – pra juntar vários MCs numa track só (nem sabíamos que era um dos primeiros cyphers na época) e fizemos a “Mixtape Zero Grau (2006)”, uma track só com várias bases mixadas e os mcs rimando um atrás do outro.

Com isso fizemos um evento de lançamento desse trabalho num bar que ficava na pista de skate do Gaúcho (Radiola Bar), onde se fortaleceu ainda mais esse movimento que estava surgindo do Rap de Curitiba. Havia muitos artistas fazendo seu corre e ali foi um evento que reuniu muita gente da cena também.

A partir dessa união começou a surgir mais gente interessada no que estávamos fazendo e foi agregando mais gente ao redor. Talvez esse seja um motivo do que veio depois, um movimento na cidade que a gente apelidou de CWBEATS, que posteriormente (2008) a produtora Priscila Gomes criou o evento “I Love Cwbeats” onde o foco era dar protagonismo para os artistas da cidade, num evento que sempre havia um MC, um beatmaker e um DJ da cena local se apresentando, marca que existe até hoje.

Aí vieram festas como “Hip-Hop Casa Cheia” onde trouxemos Marechal, Kamau, Rua de Baixo, Relatos da Invasão entre outros, e a partir daí recomeçaram a surgir eventos maiores em Curitiba.

Edição especial da festa “I Love Cwbeats” – 2009 – Cabês, Cilho, Dario, Laudz & Nave, os DJs Peen, Kbc & Caê Traven e apresentação de Max B.O
Banda I Love CWBEATS no GO SKATE CWB FESTIVAL 2011 – Reprodução de beats ao vivo com Cabês, Nave, Dario, Laudz e Cilho. Mestre de Cerimônia: Nairobi
Lançamento do primeiro disco do Cabes “Todo Dia é Assim” 2009

Kalamidade: Falando de produção em um cenário analógico, como se construiu a chegada de máquinas de produção e seu uso mais frequente?

CABÊS: Equipamentos sempre foram muito caros e de difícil acesso. Os programas de computador foi o que possibilitram a gente a dar os primeiros passos nessa relação de música-beats, ninguém era músico profissional, mas todo mundo sabia mexer no computador, então foi isso que nos deu a chance de “tentar” fazer música.

O DJ Bk12 já tinha toca-discos e um mixer que havia um botão de sampler, onde ele conseguia cortar um pedaço de uma música e repetir, lembro desse como meu primeiro contato com um equipamento mais avançado desse tipo.

O Nel Sentimentum tinha uma MPC e a gente se reunia na casa dele pra mexer, acho que a maioria de nós teve seu primeiro contato nesse momento. A gente se reunia na casa dele pra fazer sessões de Rap e troca de informações, assim foi o primeiro contato que eu tive com uma bateria eletrônica de verdade e foi ali que aprendi a mexer nesse equipamento.

Acho que o diferencial que existiu na época da rapaziada de CWB, além da vontade de ir além, foi esse fortalecimento mútuo que existiu entre trocas de informação e essa busca por evoluir, mesmo com as condições escassas que existiam na época.

Laudz, Dario, Nave e Cabês – Foto: Pablo Vaz

Kalamidade: Morando há alguns anos em São Paulo, como você enxerga as nuances entre aqui e Curitiba, no que diz respeito de viver a cultura e passá-la adiante? Quais semelhanças e diferenças entre esses dois grandes cenários?

CABÊS: São Paulo é o berço da cultura no Brasil. Só quem nasceu ou é de fora da cidade sabe o quanto a gente olha e se espelha pra realizar algo, principalmente naquela época onde a informação era escassa. Fora o caminho que era pra sair da sua cidade e vir até São Paulo, difícil para jovens na época sem recursos e sem conhecimento.

Hoje com a internet ficou mais fácil de saber o que está rolando em qualquer parte do mundo, mas antes era só quem viajava entre os estados que trazia a informação e pra nós em Curitiba era muito o pessoal do Skate que fazia esse intercâmbio, seja trazendo as fitas de vídeos de skate 411 com as músicas, quanto os discos e novidades que estavam acontecendo na cena de São Paulo.

A gente devorava toda informação que recebia daqui, uma fita k7 era copiada pra várias pessoas, então acabava que todo mundo recebia as mesmas músicas e foi assim que as coisas foram se formando pra gente.

Teve um evento lá no início dos anos 2000 numa balada chamada All Beats – que foi a banca na época do Rima Rhara – Elo da Corrente, Ascendência Mista, Mzuri Sana e outros – pra CWB, que pra nós foi um marco, foi quando nós que éramos do “underground” de Curitiba nos encontramos com pessoas que a gente só ouvia as músicas, ali foi um click de que existiam pessoas que também gostavam do que a gente gostava e que dava pra gente fazer também.

Essa era a força de influência que SP exercia pra nós lá nessa época de informação escassa. Tivemos a sorte de encontrar pessoas que toparam passar informações pra gente numa época de difícil acesso e que, por isso, a gente repassava adiante qualquer pedaço de informação que chegava pra nós.

A gente conversava pela internet com várias pessoas de SP, como Ogi, Mascote, DJ Soares, Geleia, Shou, Ricardo Nare, entre várias outras pessoas que também chegaram a ir a Curitiba nesse fortalecimento de amizades e música.

Acho que a semelhança é que pessoas que pensam parecido estão em lugares parecidos, não tem jeito. Por mais expansivo que seja, nicho é nicho, então as pessoas acabam se encontrando. A diferença mesmo é o acesso a informação que demora pra chegar a lugares mais distantes, como era o nosso caso não estando no eixo.

Pra quem nasceu no eixo (SP-RJ) talvez não sinta a diferença, mas pra todas as pessoas que são de fora, isso afeta muito, mas felizmente aos poucos isso está mudando.

Kalamidade: Curitiba segue sendo um berço de novos grandes talentos dentro dos 4 elementos. Quais pessoas são lembradas quando você pensa em nomes em ascensão?

A cena vai se reciclando, vai evoluindo e muita gente boa surgiu ao longo desses anos. Dow Raiz, Pecaos, Pete Mcee têm feito um trabalho muito bonito na música. Bboy AKA DVS é um destaque internacional na área do break por exemplo. A DPaula é uma artista que tem feito vários eventos interessantes em Curitiba e trazendo um destaque bonito pra cena de arte de rua. A cena de CWB sempre tem gerado novos artistas que volta e meia despontam por aí.

Agradecemos por essa troca e aproveitamos pra lembrar você que leu de correr pra seguir o Cabês nas redes e plataformas pra acompanhar os trabalhos que em breve tem disco novo dele!

Aproveita também pra ler a nossa última matéria com uma entrevista com o músico, produtor, MC e beatmaker Blackalquimista, e fica de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!

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#14 – GIRO Kalamidade