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A (re)construção de um novo Brasil passa pelo Rap

Um debate realista sobre a sociedade brasileira atual e a influência que o Rap tem sobre ela, seja como instrumento pedagógico a partir da sua característica de documentação histórica, seja como a diretriz para a construção de uma nova sociedade e uma nova consciência popular

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A História e o Rap

Por volta do já distante janeiro de 2020 veio à luz do mundo o História em Pauta, um projeto criado por mim e que busca utilizar a música, e principalmente o Rap, como uma ferramenta de ensino da disciplina História. Na época eu ainda não tinha entrado na faculdade e nem pensava em uma atuação profissional como historiador, mas já nutria um interesse e um amor muito grandes pela História e já era, há tempos, um apaixonado pelo Rap e pela cultura Hip Hop.

Quando eu me lembrei de um dos célebres versos do seu, do meu, do nosso Emicida, tudo fez sentido pra mim e eu tive o empurrão que eu precisava pra começar o projeto e trilhar o caminho que eu sigo até hoje, como estudante e futuro educador.

Eles não vão entender o que são riscos,
E nem que nossos livros de História foram discos.

Emicida – Ubuntu fristili

Por essência, todos os trampos que compõem a vasta e extensa discografia do Rap Nacional são documentos históricos valiosíssimos. Esses discos registraram momentos da nossa História recente, trazendo relatos de quem tava inserido nos mais diversos contextos nos quais eles foram produzidos.

Os relatos vivos, a conexão com a juventude, a crítica social, a abordagem de temas atuais e a capacidade de sintetizar e dar sentido às mais diversas referências culturais e históricas, chancelaram o Rap como poderoso instrumento de aprendizado. E, na verdade, usar esses discos e o próprio Rap como material pedagógico não é, em si, uma novidade.

Desde o início dos anos 90, enquanto a cultura Hip Hop se fortalecia no Brasil e o Rap já ganhava corpo por todas as regiões do país, diversos projetos que o utilizavam como ferramenta pedagógica foram sendo criados e aplicados. Um dos mais notáveis, o Rapensando a Educação, elaborado pela gestão Erundina à frente da prefeitura de São Paulo com o Paulo Freire como Secretário da Educação, trouxe ali em 1992 os trampos do Racionais e do DMN pra serem debatidos nas escolas, com as letras dos grupos sendo usadas nas aulas de disciplinas como Gramática, História e Geografia.

Foi um projeto louco, a frente do tempo ali na época e que gerou bons frutos. No final dos ciclos propostos, os caras colaram nas escolas em que o projeto foi aplicado, aproximando as comunidades dos alunos e dos colégios e reduzindo a evasão escolar. Mas vocês já tão ligados sobre como a política funciona, e no começo de 1993 o Maluf assumiu a prefeitura da capital e não deu continuidade ao projeto.

A ideia que eu quero trocar aqui hoje parte da possibilidade de darmos um passo adiante a partir do que foram essas iniciativas, como cultura Hip-Hop e como sociedade, no uso do Rap como instrumento político pra algo que se torna cada dia mais urgente: a construção, ou reconstrução, de um novo Brasil. O nosso Brasil.

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Mano Brown em um dos encontros com as crianças e jovens nos ciclos propostos pelo Rapensando a Educação | Reprodução Instagram: Chiquinho Divilas

A lista de fatores que fazem com que o Brasil seja um barril de pólvora é extensa. Cenário atual de uma economia neoliberal que vem transformando tudo ao nosso redor em mercadoria; trabalho informal avançando aos montes enquanto os direitos trabalhistas são atacados sistematicamente; alugueis e custo de vida nas grandes cidades subindo mês a mês; número alarmante de pessoas em situação de rua; gerações inteiras sem a mínima perspectiva profissional e de aposentadoria; pessoas trabalhando cada vez mais, com números nunca antes vistos de burnout e questões psicológicas ligadas ao trabalho; as polícias militares com cada vez mais aval do Estado pra matar (as pessoas pobres e pretas, note-se); números de crimes contra mulheres aumentando cada vez mais; o Brasil sendo o país com mais mortes de pessoas trans no mundo pelo 14º ano consecutivo. O cenário é triste e desolador.

O Rap, por outro lado, vem canalizando todo o ódio e toda a revolta que tudo isso gera e pondo em linhas, ao longo das últimas décadas, as diretrizes pra que possamos construir um novo país. Entender qual a conexão do Rap com a nossa realidade, hoje, e que ele relata uma História da qual nós somos consequência e agentes principais é a chave! O papo que vamos ter aqui é sobre o Rap ser a trilha sonora e o produto cultural da revolução brasileira. Revolução, essa, que tem seu primeiro alicerce na educação.

Rapensando a Educação

Eu separei alguns trampos pra trazer aqui pra essa ideia e analisarmos juntos. Pra começar, já que estamos falando sobre educação, queria trazer a quinta faixa do clássico absoluto Non Ducor Duco do nosso chapa Kamau, “Não Acredite se Quiser”, que é contestadora do início ao fim. Entre críticas sobre como o uso da religião em prol do enriquecimento e benefício próprio é um câncer no nosso país até uma ideia sobre o sensacionalismo midiático penal, a lá Datena e cia, alguns versos sobre como a nossa educação funciona sempre me chamam muito a atenção. Se liga:

História mal contada, distorcida e maquiada
Retocada, ensinada como verdade
Na escola aprendem a versão pela metade
Apoiada num falso tratado de liberdade

Que nem de longe amenizou os danos
Aos seres humanos descartados por não mais encaixarem nos planos(…)

O livro diz que os vilões eram heróis
Quem colheu e construiu
Nunca teve o que deixar pra nóis

Kamau – Não Acredite se Quiser
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Rapper Kamau | Reprodução Site Bocada Forte | Foto: Renato Nascimento

O que o Kamau tá dizendo pra gente nessas linhas aí é que a forma como aprendemos a História não é um processo reflexivo, com a finalidade de te fazer olhar o passado de uma forma crítica e contestadora pra, enfim, ter a possibilidade de construir algo diferente daqui pra frente. É um chamado a reflexão de que, pela forma apática que estudamos a História, a gente não se enxerga como um produto dela.

Tradicionalmente, aprendemos que a nossa terra foi descoberta por um povo moral e socialmente superior, os europeus, que a Escravidão e o genocídio das populações nativas foram meros acontecimentos históricos sem a mínima relação com a nossa sociedade de hoje em dia, e que os bandeirantes, que ganharam notoriedade histórica por escravizar, estuprar e assassinar quem viam pela frente, possuem um status de bravos heróis na nação, nomeando de estradas a grupos de comunicação em massa.

Essa é a versão que aprendemos da História pra que, justamente, não haja um senso crítico e uma reflexão sobre como essa terra, que hoje chamamos de Brasil, foi saqueada e violentada desde a chegada dos europeus. Nos vemos distantes e incapazes de dialogar, como sociedade que conhece a sua própria História, sobre o fato do nosso país ter sido construído em cima do sangue de milhões de africanos e povos nativos, e sobre como esse processo sanguinário (e a mentalidade violenta que vem de bagagem com ele) perduram até hoje, seja no imaginário popular, seja como prática de Estado.

“Boa Esperança”, do Emicida, traz versos que incomodam, instigam e revoltam. São reflexões próximas do que a gente tá falando, em cima de um beat do Nave ainda, sacanagem pura. 

Aí, nessa equação chata, polícia mata, plow!
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
Meu sangue na mão, dos radical cristão
Transcendental questão, não choca opinião
Silêncio e cara no chão, conhece?
Perseguição, se esquece? Tanta agressão, enlouquece
Vence o Datena, com luto e audiência
Cura baixa escolaridade com auto de resistência

Emicida – Boa Esperança

São reflexões e relatos como esses, trazidos pelo Rap, que possuem esse poder transcendental de te tirar da zona do conforto e te fazer enxergar a realidade através de outros prismas. Enxergar a História através de outros prismas e se questionar do porquê o aprendizado dela, na nossa sociedade, é apático e desmobilizador.

Se empoderar disso, da nossa História como nação e da sua como indivíduo, com uma série de fatores que contribuíram pra que você seja quem você é nesse exato lugar da sociedade que você ocupa, é revolucionário. Flagra esses versos da brabíssima Souto MC na “Retorno”, quarta faixa do álbum de estreia dela, o Ritual

Filhos da terra, de volta pra terra todo canto do mundo é seu lar
Nossa alma não grita mas berra, nosso canto é guerra que atravessa rio e mar
Não vão mais roubar, não vão mais ousar
Da história de um povo se apropriar
Cocar não é enfeite ou brinquedo, se exige respeito, repensa antes de usar!

Não deixamos de ser o que somos por conta de um celular
São mais de 500 anos, que eles causam danos visando apenas cédulas
Territórios originários e não fundiários, herança viva secular
Crença nas criança, o levante avança, trazendo vitória que era incrédula

Souto MC – Retorno
Souto MC | Reprodução Instagram Souto MC | Foto: Mendesculpa

São muitos debates postos em jogo aí. É uma reflexão sobre a invasão que esse país sofreu e a perseguição dos povos que já estavam aqui antes até hoje, chegando ao debate sobre a demarcação das terras indígenas que vem tomando os noticiários de uns anos pra cá. É como alguém invadir a casa que você mora, te escravizar, destruir tudo o que você é e tem, e depois de séculos dizer, a muito contragosto ainda, que você tem direito a um quarto. Uma outra faixa da Souto, a “Reconquista”, começa logo assim ó:

Honrando o passo de quem veio antes
Hoje não tem expedição e sim execução de Bandeirante
Não temo seus infante, não somos seus enfeites
Conheço bem minha fonte e aviso respeite

Souto MC – Reconquista

Coisa linda. O Rap Nacional é cheio de artistas com obras que questionam a nossa sociedade atual, a formação do nosso país, as ordens sociais, econômicas e políticas que foram formando esse espaço e todas as violências enraizadas culturalmente na nossa nação. A obra de artistas como a Souto MC, Emicida, GOG, Câmbio Negro, Cristal, Zudizilla, DMN, Racionais, Rincon Sapiência, Don L, Dina Di, Monna Brutal, Rap Plus Size, Nic Dias, Victor Xamã, MV Bill, Thiago Elniño, Rodrigo Ogi, Nega Gizza, Katu Mirim, Dalasam, Rappin Hood, Cris SNJ e muito mais gente traz os relatos e as verdadeiras histórias que compõe e constroem o nosso país.

Ouvir o Rap com esse olhar, de entendimento e compreensão das diversidades que formam e formaram o Brasil através das linhas dessa rapa e de muitos outros nomes, é o desenvolver de um outro alicerce que eu tô buscando trazer em mim também: o da escuta atenta e ativa dessas e de todas as histórias que esse país carrega e de como, a partir disso, fazer nascer um novo Brasil.

Escuta ativa para uma voz ativa

Ao falarmos de revoluções e grandes transformações na nossa sociedade, é fácil cairmos em idealizações e romantizações que nos fazem acreditar que as coisas acontecem da noite pro dia. E o meu papel aqui, se é que eu tenho algum, não é esse. É importante, acima de tudo, compreender o nosso país e entender que processos revolucionários são construídos diariamente e começam com uma transformação nossa, particular, interna.

Eu trouxe a ideia do Rapensando a Educação justamente pra pensarmos, como comunidade em torno da cultura Hip-Hop, em como podemos nos organizar politicamente e socialmente pra pautar debates a partir do que o Rap nos traz. A própria educação pública, por exemplo. O sucateamento do ensino público é proposital, é sistemático, e não é um mero acaso. Além do esforço em não se desenvolver um senso e um olhar crítico das gerações que tão chegando agora, existe o poder financeiro movimentando as decisões no campo da educação também.

Pra exemplificar o que eu tô querendo dizer aqui: o secretário da educação do Estado de São Paulo, Renato Feder, é acionista da Dragon Gem LLC, uma empresa de investimentos que é dona de 28,1% das ações da Multilaser, gigante no ramo de eletrônicos e informática. A Multilaser fechou contratos milionários com o a Secretaria da Educação do Estado de SP, no final de 2022, pra venda de notebooks e tablets visando um ensino público 100% digital.

Depois que o caso caiu na mídia o governo Tarcísio recuou e disse que os alunos iam receber os livros impressos mesmo. E, agora, surge a notícia de que o chat GPT vai ser usado como um ‘auxílio’ aos professores da Rede Pública de ensino, tornando a educação cada vez mais sistemática e menos emancipadora, menos crítica e menos racional. Além disso, essa ‘digitalização’ da educação vai trazer de novo a tona essa ideia ai de notebooks e tablets como uma solução, sem nem existir o debate sobre a desigualdade no acesso à internet e a bons planos de dados, muito menos aos efeitos crônicos que reforçar o uso desses aparelhos vai ter na saúde da molecada. Vai vendo.

Dei esses exemplos aí pra entendermos que o problema da educação não é ela ser pública, mas sim quem chefia os cargos públicos responsáveis pela sua manutenção e administração. 

Renato Feder (à esq.) e Tarcísio (à dir.) | Reprodução Site O Globo | Foto: Governo do Estado de São Paulo

O Rap é capaz, como movimento e como manifestação, de se organizar pra pautar debates dentro desses espaços. É capaz, por exemplo, de se organizar e cobrar que a Lei aprovada em 2003 e que prevê conteúdos referentes a história e cultura afro-brasileira em todas as disciplinas e em todas as etapas escolares seja cumprida. O Rap é capaz de cobrar isso e, através do Hip-Hop, chegar em diversos lugares e regiões trazendo à luz desse debate às comunidades próximas às Casas de Cultura, Casas do Hip-Hop, Fábricas de Cultura, Centros Culturais, e por aí vai.

É compreender que é possível não só se enxergar como um ser político, atuante e revolucionário, mas que as outras pessoas podem se enxergar assim também. É assim, pelo menos na minha concepção, que começa a se construir uma revolução.

Revolução já nesse país, revolução como jamais se fez.
Que venham os livros, que abram-se arquivos(…)

GOG em Acorda Brasil, 8ª faixa do álbum “Vamos Apagá-los.. Com o nosso raciocínio

Esse é o ponto central da nossa ideia: construir a nossa revolução, a revolução brasileira, aos poucos. E o Rap ser o combustível e direcionador a isso. Nos organizarmos, como cultura, dentro desses espaços já citados antes onde ela acontece. Trocarmos ideia, nos movimentarmos em todas as áreas e quebradas e criamos uma força maior ainda, como movimento, pra pautar o debate público com atuação nas ruas e fora delas: estarmos na Câmara Municipal (onde os vereadores ficam) e na Assembleia Legislativa (deputados estaduais) num primeiro momento pra levarmos propostas e debates com o apoio da sociedade.

Estarmos juntos de organizações fundamentais como o Geledés – Insituto da Mulher Negra, com tantas contribuições pra história das mulheres negras e pro movimento Hip-Hop inclusive, pra um fortalecimento mútuo. Estarmos nas ocupações de movimentos que lutam por terra e moradia, como o MTST, convivendo, aprendendo, educando sobre o Rap e o Hip-Hop, atuando na linha de frente. Ter como norte (pelo menos eu acho que seja um baita norte), a “Esse É Meu País”, do Câmbio Negro.

Debatermos sobre a urgência de uma assistência psicológica acessível e que compreenda as diferentes camadas sociais, raciais e de gênero que atravessam a nossa população, como é levantado na “Depressão” da Nega Gizza. Debater novas formas de se ter estabilidade no ambiente profissional, melhores salários e condições de vida e moradia, como a “Cimento e Lágrimas” do FBC nos traz. Debater as condições do sistema carcerário brasileiro, nos ambientes masculinos e femininos, compreendendo as diversidades de gênero, como “Diário de um Detento” e “Irmã de Cela” nos trazem.

Tudo isso contempla o segundo alicerce, o da escuta e entendimento dos diversos brasis que compõe o nosso país, através do que nos é transmitido pelo Rap. Cabe a nós estarmos com os ouvidos sempre atentos e dispostos.

Manutenção da memória através do Rap

O terceiro alicerce desse processo revolucionário passa pela manutenção da nossa memória como nação. É indiscutível que o nosso país lida muito mal com a sua História e a sua memória, e isso fica muito nítido quando vamos discutir punições e a responsabilização do Estado e os seus agentes.

Os crimes cometidos pelos torturadores ao longo da Ditadura Civil-Empresarial Militar (1964-1985), os crimes cometidos por policiais militares e a própria existência das PMs como forças de controle e repressão, entulhos da ditadura, não são encarados como fatos e crimes a serem debatidos e suas respectivas punições cumpridas.

Essa falta de responsabilização crônica, somada com a forma como nosso país foi construído, faz com que naturalizemos a violência como parte inerente da nossa sociedade. Porque, batendo de novo nessa tecla, se nos apoderássemos da nossa História, um grande sentimento de revolta ecoaria dentro de cada um de nós.

Comecei a entender esse processo de apagamento da memória quando ouvi a “Zerovinteum”, faixa que abre o saudoso Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Para, segundo disco do Planet Hemp e que rendeu uma belíssima matéria lá no História em Pauta, diga-se de passagem. Se liga:

Seu Gilberto Cardoso dos Santos, Dona Jane
Lucilete Silva Santos, descansem em paz, descansem em paz
Fábio Pinheiro Lau, Joacir Medeiros, Guaracy Rodrigues, hé
Hélio de Souza Santos, Lucineia, Núbia
Paulo Roberto Ferreira, Adalberto de Souza, descansem em paz
Cláudio Feliciano, Lúcio e Paulo Cesar Soares
Cléber Alves, Amarildo Baiense, Edmílson Rocha, José dos Santos

Planet Hemp – Zerovinteum
Velório das vítimas da Chacina de Vigário Geral | Reprodução Site Voz das Comunidades | Foto: Márcia Foletto

Quando eu ouvi todos esses nomes seguidos sempre do “descanse em paz” no final da música, fui atrás de entender do que isso se tratava e de quem eram essas pessoas. Descobri que são todas vítimas da Chacina de Vigário Geral, que rolou na comunidade de Vigário Geral lá no Rio de Janeiro em 1993. Foram 21 pessoas executadas a sangue frio, muitas dentro das suas próprias casas, por 36 agentes de segurança encapuzados.

A chacina aconteceu em retaliação à morte de um sargento da PM na região alguns dias antes. Até 2015 pelo menos, e acredito que continue assim, apenas uma pessoa havia sido condenada pelo crime, e as famílias das vítimas aguardam justiça até hoje. Pesquisando pra matéria na época, vi também sobre a Chacina da Candelária, relembrei o Massacre do Carandiru e muitos outros que foram acontecendo ao longo dos anos 90 e depois da virada do século, sem que ninguém fosse posteriormente punido ou responsabilizado.

A grande questão desse terceiro alicerce é essa: essas memórias, por mais dolorosas que sejam, precisam se manter vivas pra que a gente, como movimento e como sociedade, sempre se lembre de quem as cometeu e do nome de quem as vitimou. Manter essa memória viva pra que possa haver movimentos que unam grupos da sociedade civil, como o próprio Movimento Hip-Hop e coletivos jurídicos, por exemplo, pra estruturar campanhas de reabertura de casos e processos arquivados onde a ação de agentes do Estado vitimou pessoas inocentes.

É sistemático, acontece todo dia, e a forma como naturalizamos a violência (e consequentemente a dor que ela causa) faz com que a sensação de impotência tome conta de nós. O Emicida diz, na “Dedo na Ferida”:

Alphaville foi invasão, incrimine-os.
Eu grito como fuzis, uzis, por brasis, que vem de baixo igual Machado de Assis

É buscar formas de lutar pra que não tenham que escrever outras “Na Entrada do Céu”, como o Rashid escreveu. Pra punir os responsáveis que agiram pra que ele tivesse que escrever essa. O Rap, produzindo tantos documentos históricos e relatos fundamentais, como já falamos lá no começo, tem esse poder de manter a memória e a história vivas, como manifestação artística, e de se organizar e cobrar pra que os responsáveis sejam punidos, como movimento. E veja, não tô dizendo que o Rap deve fazer isso ou aquilo, porque ele não deve nada, muito pelo contrário. Eu que devo muito a ele. Tô refletindo sobre os diversos poderes que ele possui.

Amor. Ele mesmo.

Falamos sobre educação, sobre memória e sobre escuta, e o último alicerce dessa parada toda não poderia ser outro senão ele: o amor. O amor e o que vem a reboque pra que ele seja uma realidade: a coragem. É impossível que um processo revolucionário nasça, mesmo que dentro de você, sem a existência do amor. O amor por você mesmo, pra construção de um novo você. Uma nova versão sua. Amor pelas pessoas ao seu redor, pelos seus, e pelo mundo que cerca você e essas pessoas.

Sem romantizar nada, mas pra que se nasça um novo país, uma nova sociedade, mais justa e menos desigual, com mais acessos à todas as pessoas, com mais oportunidades à todas as pessoas, com menos violência contra os corpos e existências que não sejam os iguais aos padrões culturais e heteronormativos, com respeito pelo meio ambiente que nos cerca, nos guarda, e pelos povos que já o guardavam e sempre o respeitaram antes da concepção dessa terra como Brasil, é preciso de amor.

Que seja algo que nasça e floresça em você. Em mim. Em cada um de nós. A revolução se constrói assim, dentro de cada um de nós e coletivamente. Pra isso, é fundamental entender o que sentimos, canalizar o ódio e a revolta que guardamos pra que não adoeçamos e construir o amor em nós e nos nossos. Um dia de cada vez.

Que um novo Brasil nasça a cada Rap que você ouça. Nóis.

Pra se aprofundar mais nas ideias que eu trouxe nesse texto, montei também essa playlist intitulada “Um novo Brasil”, pra inspirar e embalar a sua leitura e suas reflexões!

Aproveite também pra ler a nossa última matéria sobre como o Disco se conectou com a música Rap, e fique de olho nos conteúdos DE GRAÇA que o Kalamidade traz para você sobre a cultura Hip-Hop!

Texto por: Daniel Lodovico

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