Pelas lentes de Felipe Cardoso: afeto, Rap e outras histórias

Felipe Cardoso, fotógrafo dedicado a fotografar pessoas pretas, compartilha sua trajetória e principais referências.

Felipe Cardoso nasceu em Cotia e foi criado no ABC paulista. Com influências que vão de Walter Firmo e Seydou Keita a Spike Lee, desde 2016 Felipe utiliza suas lentes para retratar a negritude através de uma ótica que revela uma sensibilidade única, fazendo das ruas seu próprio estúdio e contando diversas histórias através de suas produções fotográficas.

Felipe Cardoso (Instagram)

Em 2018, Felipe teve uma de suas fotos usada como capa da exposição Fotopreta – a primeira exposição fotográfica coletiva formada integralmente por fotógrafos negros e fotógrafas negras, em São Paulo. Além disso, sua participação no universo Hip-Hop também é notável; assinou a capa do álbum “Pela Honra”, de Ôbigo (2019), foi responsável pela direção fotográfica dos videoclipes das músicas “Negócios” e “Boa Sorte”, do Marabu, e também fotografou a festa Vibe e a Sem Classe – primeira festa de moda da América Latina.

Confira a troca de ideia com o Kalamidade:

K: Em entrevista concedida ao Tô de Cacho, você falou que sua inspiração na fotografia está ligada a músicas, filmes e outros fotógrafos. Como seu envolvimento com o Punk, Hardcore, o skate e os animes influenciou a visão que você leva para o seu trabalho?

F: Todo o processo do que eu consumia quando era mais novo, na época de escola – música, skate, mangá e anime – me levaram a questionar onde eu me encaixava, tá ligado? E isso foi me direcionando. Sempre me questionei qual era meu espaço e onde eu deveria estar.Quando eu realmente me descobri e entendi esses questionamentos, tudo que eu consumia me ajudou a entender e afirmar que eu tinha um lugar, mas que eu também poderia estar dentro de vários espaços, seja no rock, no anime ou no skate. Eu não estaria errado em estar ouvindo um rock, indo em eventos de Hardcore ou de Emo; por mais racista que o Emo fosse na época. É estranho falar isso sempre, mas é muito necessário apontar, tá ligado?

Tudo aquilo que me fez sentir deslocado, também contribuiu para que eu encontrasse o meu caminho. Todos os pesares da vida me levaram a entender o meu lugar e eu quero que as pessoas do futuro, aquelas que ainda vão chegar, entendam que elas também tem o lugar delas, tá ligado? Que elas não precisam mais ficar se preocupando e se questionando por tudo. Ah mano, onde é meu espaço? Teu espaço é onde você quiser estar, tá ligado?

Num todo, toda minha influência foi gerada nisso. Na minha adolescência, o anime nunca teve representatividade. Os eventos eram espaços estranhos para mim, mas eu gostava de estar neles porque aparentemente todas as pessoas eram aceitas. Ao mesmo tempo eu curtia rock e tinha uma quebra com o Rap. Naquela fase da vida, o Rap era somente o que os moleques brancos da escola zuavam, usando minha própria cultura contra mim. O Rock foi me ajudando por ser mais transgressor, no sentido de eu ver pessoas pretas no Rock e pensar que eu também poderia estar ali. Fui me descobrindo com o tempo até que cheguei na Bad Brains, uma banda de Punk e Hardcore, que mostrou que eu poderia fazer o que quisesse, tá ligado? Com o tempo encontrei a arte, tinha uns 17 ou 18 anos.

K: Como se deu o envolvimento com o Hip-Hop?

F: Meu encontro com o Rap se deu através do skate, mas só entendi com o tempo. Quando que conheci os filmes do Spike Lee, comecei estudar coisas sobre minha cultura. Eu ainda estava no Punk e no Hardcore, mas sabia que o Rap também era um lugar para mim. Já estava ouvindo Tyler, conhecendo umas levas diferentes de Rap e curtindo muito o Rap dos anos 90. Fui ao show do Joey Bada$$ e, mano, o Rap NY é minha paixão! Com o Spike Lee veio o Public Enemy, em “Faça a Coisa Certa”, naquela abertura linda. Public Enemy me ensinou muito que o Rap é meu, tá ligado? Eu fui absorvendo aquilo e trazendo para minha vida. 

Quando eu entrei na faculdade, falei para o Marcelão – um tiozão roqueiro, uma pessoa incrível que me acolheu pra caramba na faculdade que só tinha gente branca – e para mim mesmo: ‘mano, eu quero seguir minhas referências pretas na fotografia, no cinema e na música. Eu quero fotografar minha cultura.’ E ele me disse: ‘você vai marcar! Vai dar sua contribuição para sua cultura.’ Hoje em dia sei que eu consegui e que o Rap foi libertador nesse sentido. Ele veio junto com tudo isso, meio que num pacote de respostas para tudo o que eu me questionava. Isso foi muito bom para mim, foi o que me fez chegar até aqui.

K: O Djonga tem um trecho de música que fala “eu devolvi a autoestima pra minha gente, isso que é ser hip hop”. Você se sente fazendo parte disso através da fotografia exclusiva de pessoas pretas?

F: Lógico! Sinto pra caramba! Toda pessoa preta que se envolve no movimento procura isso, mano: devolver a autoestima para as pessoas através da arte. Eu sempre pensei nisso. Porque eu não tinha autoestima, tá ligado? Eu não sabia me vestir ou como me portar, mas eu sempre soube que era preto, tá ligado? Eu só não me sentia representado porque eu cresci num lugar que tem espaços com muitas quebradas nordestinas e muita gente branca. Era uma molecada que trazia o Rap de outra forma, sem pautar a questão racial. Eles chegavam muitas vezes contrapondo pretos num espaço que só tinham figuras pretas. Além disso, eu estudei em uma escola que tinha pouquíssimas pessoas pretas. Então tudo isso me ajudou a chegar num certo lugar em que eu comecei a me encontrar dentro do Rap e dentro da cultura negra, assim eu fui devolvendo a autoestima pra mim mesmo e depois passei isso adiante.

K: Conta como foi a ideia de fazer uma releitura do quadro “A incredulidade de São Tomé”, do Caravaggio? 

Releitura de “A incredulidade de São Tomé”, feita por Felipe Cardoso e disponível no Instagram.

F: A ideia surgiu em 2015, quando entrei de cabeça na história da arte. Eu sempre quis fazer, sempre quis demonstrar minha paixão pela arte e em 2019 a releitura surgiu de um cansaço de estar sempre apontando o racismo, de ter que ficar falando toda hora que isso acontece e ainda assim as pessoas duvidarem. A ideia surgiu com base em algumas coisas. Gostava muito de Caravaggio, do jeito questionador que ele tinha e de como ele fazia arte. E então comecei a trabalhar essa ideia, trazendo o que eu e várias outras pessoas passávamos. No entanto, isso me deu um retorno legal, a galera sentiu o baque.

K: Num perfil que a @pretas_expoart fez, você falou que enxerga na fotografia “histórias por entre as paredes, é vida circulando.” É possível ver muito disso no seu trampo com a série de fotos nas ruas do centro. Como está sendo recontar essas histórias agora durante a pandemia? Vi que você está lançou as “Crônicas da Quarentena”.

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F: Eu parei um pouco agora, mas ainda tenho alguns roteiros pra fazer das histórias da quarentena. Meus pais ficaram internados, quase perdi minha mãe para a COVID-19, mas minha arte ainda é a rua, minha forma de expressar se movimenta para além das quatro paredes. A quarentena foi um bagulho doido porque eu e minha mãe tivemos que diminuir muito o contato e eu me preocupei em não me sentir obrigado a fazer isso, sabe? A estar sempre postando e tal, porque mano, você tem que se cuidar e ter várias ideias pra tentar se manter em tempos assim. Além disso, minha preocupação também foi com outros artistas e com outras pessoas que trabalham com audiovisual. Até pensei em roteirizar isso pro “Crônicas de Quarentena”, mas nos tempos de hoje tudo o que eu faço remete fortemente ao que eu tava sentindo durante essa época. As minhas fotos eram as mesmas quando eu fotografava outra pessoa, mas eu comecei a pensar em uma visão mais particular para o que eu vivo. Tentei transmitir isso e ainda vou transmitir bastante, ainda tem umas coisas pra sair.

K: E para o futuro, quais são seus planos?

F: Para o futuro eu penso em começar a explorar mais meu tato e visão para o cinema. Começar a fazer curtas, a trabalhar em umas ideias que eu tenho há anos e também trabalhar a fotografia para além do Instagram, tá ligado? Começar a fazer algo para o tempo de agora. Tentar me manter e, ao mesmo tempo, conseguir fazer minha arte daqui pra frente. Mas o cinema eu acho que é meu ponto objetivo.

K: Pra finalizar, a gente do Kalamidade se amarra numa indicação. Nos indique um álbum e um fotógrafo que mudaram sua vida e formaram o Felipe que você é hoje.

F: Primeiro eu vou indicar um fotógrafo que eu amo e mudou minha vida: o Jamel Shabazz. Ele é um dos caras incríveis que admiro. Eu consegui trocar ideia com ele outro dia pelo Instagram, um dia eu mandei uma DM e ele respondeu. Não sei nem se é ele que responde mesmo, mas se não for também o maluco é minha referência. Eu tô muito honrado! 

Já o álbum, é difícil falar “caramba é esse”. Tem tantos álbuns cara, eu gosto tanto de música. Mas acho que o Colouring Book, do Chance, the Rapper, eu sempre vou ouvir porque eu vejo a vivência dele muito igual a minha, na questão de ser um mano da igreja. Não que eu vá ainda, eu não vou mais. Mas acho essa ideia muito louca, sempre vou revisitar esse álbum. 


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