Milton Nascimento, prestes a completar 80 anos, é figura unânime entre os maiores nomes da MPB. Nos últimos meses, Milton anunciou que encerrará sua carreira e deu início, neste final de semana, a sua turnê de despedida, a qual batizou de “A Última Sessão de Música”. Mas o que o cantor e compositor, nascido no Rio de Janeiro e criado em Minas Gerais, tem a ver com o Hip-Hop?
Desde a década de 1970, Bituca, como é conhecido, serviu de influência para incontáveis artistas. Para citar um exemplo de sua magnitude, recentemente Clube da Esquina, sua parceria com Lô Borges, Flávio Venturini e uma série de outros músicos, foi eleito o melhor álbum brasileiro de todos os tempos. A lista trouxe no Top 10 nomes como Jorge Ben e Racionais MCs. Com toda esta influência, é possível traçar uma enorme rede de conexões, sonoras e visuais, da obra de Milton na música como um todo e em diversas áreas da cultura popular.
Pegue sua passagem deste Trem Azul para viajar conosco pelas reverberações do trabalho de Bituca e veja como ele se liga aos trens do Brooklyn e ao Hip-Hop.
Paradas nacionais
Não é preciso ir muito longe para encontrar um primeiro exemplo de artista que sampleou. A primeira parada deste trem é mais rápida do que ir da Sé à São Bento. Se foi em Minas Gerais que Milton cresceu e onde iniciou sua carreira, é com uma faixa em que o mineiro Djonga participa que começamos esta lista. Para Lennon e McCartney é sampleada em Maior que Seu Mundo, produzida por MãoLee e que também conta com a participação de Xamã.
Milton também participou nominalmente em canções de outros artistas. Chico Buarque contou com a participação dele em Cálice, música que se tornou um hino de resistência à ditadura militar no Brasil. Hino este que o grupo Trilha Sonora do Gueto utilizou de forma perspicaz em uma crítica a um sistema excludente que leva ao encarceramento em massa.
A parada aqui é dupla e aqui o trem se conecta com duas outras linhas. Um Girassol Da Cor de Seu Cabelo é sampleada por Rodrigo Ogi em Trindade 3 e por Brisa Flow em Câmara de Ecos. É interessante notar o contraste entre os usos: na faixa de Ogi, produzida por NAVE, não são utilizadas mais de quatro notas e elas são trabalhadas ritmicamente. Por sua vez, a faixa de Brisa tem o tema principal da música reproduzido por completo, com o grave na harmonia é trabalhado com um efeito fuzz e encaixado no beat.
Conexões internacionais
Não é segredo que nossas músicas são queridas por muita gente do meio lá fora. Arthur Verocai, Marcos Valle, Tim Maia são nomes comuns em discotecagens de gringos, por exemplo. Não é de se estranhar que Milton Nascimento tenha ganhado o coração e os ouvidos de produtores internacionais e figure na lista dos sampleados.
A primeira baldeação internacional é em Fayetteville, Carolina do Norte, cidade em que o rapper J. Cole cresceu. A faixa God’s Gift, produzida pelo próprio, utiliza os vocais de Bituca em Francisco. Com o tempo acelerado e o pitch puxado pro agudo, o sample se repete ao longo de toda a música e deixa a pergunta: seria o tal presente de Deus a voz de Milton Nascimento?
Joey Bada$$ recém comemorou os 10 anos da mixtape 1999 e é nela que está a faixa, produzida por Statik Selektah. Em Don’t Front, o rapper nova-iorquino rima sobre uma batida que conta com o sample de Tudo O Que Você Podia Ser, fruto da parceria de Milton e Lô Borges. Essa mesma faixa de Joey ainda tem um sample de Q-Tip, ele mesmo, e advinha…
O último sample da lista, ou a última parada da linha, não é do Q-Tip mas é quase. Seu primo Consequence, além de ter participado em algumas faixas do A Tribe Called Quest, possui um álbum de estúdio solo. Nele, a faixa Don’t Forget Me, de produção de Kanye West, sampleia Catavento, lá do primeiro álbum de Milton.
Ecos visuais
Milton também teve sua arte referenciada por outro elemento da cultura Hip-Hop. Na turnê que antecedeu esta de despedida, Bituca recebeu uma homenagem da dupla Os Gêmeos. Gustavo e Otávio Pandolfo, irmãos paulistas que já grafitaram por todo o mundo, foram os responsáveis pela arte do painel de fundo dos shows do artista em 2019.
A icônica imagem dos meninos sentados em frente a uma cerca de arame farpado foi registrada por outra figura marcante na música brasileira, apesar de seu instrumento de trabalho não ser musical.
Cafi, ou Carlos Filho, foi um fotógrafo pernambucano que, dentre outras coisas, assinou a foto de capa de mais de 300 discos. Além de Milton, alguns fotografados foram Alceu Valença, Cassiano e a banda Black Rio, Tim Maia, Sarah Vaughan e muitos outros. Cafi também possui um acervo histórico com fotografias de elementos culturais importantes, como os carnavais de Pernambuco e Rio de Janeiro, celebrações de religiões de matriz africana, tribos indígenas e muito mais. Após seu falecimento, muitos de seus registros foram disponibilizados no site CAFI DIGITAL.
Para fãs de quadrinhos, histórias do Clube da Esquina e do movimento de mesmo nome a que ele deu origem foram ilustradas por Laudo Ferreira, artista que também trabalhou em Olimpo Tropical e na série Orixás.
Estação interditada
Nem tudo são flores, ou nem todos os girassóis têm a cor de seu cabelo. Por mais que já tenha sido sampleado por diversos artistas nacionais e internacionais, Milton protagonizou nos últimos anos um conflito com o artista Baco Exu do Blues. A faixa Oração À Vitória, do álbum Esú, foi removida das plataformas de streaming e, após questionamentos dos fãs de ambos os artistas, a equipe de Milton publicou uma mensagem sobre o caso no Facebook. De acordo com o comunicado, o artista não foi consultado a respeito da utilização de sua voz na canção e ela foi tirada do ar.
O trem não realiza parada nessa estação, aguarde a próxima para desembarcar.
Depois que a estação fechar
Deu meia-noite e os guardinhas estão fechando a estação, e agora!? A Última Sessão de Música terá ao todo 26 apresentações, a maior parte delas em São Paulo ou no Rio de Janeiro, além das datas americanas e europeias. A despedida, de fato, está marcada para o Estádio Mineirão no dia 13 de novembro.
De qualquer forma, quando a estação fechar e o trem ficar fora de serviço, nós vimos que a obra de Milton Nascimento se fará presente nas pistas por muito tempo, aqui no Brasil e também fora dele.