Por Douglas Agyemang
Na tarde em que pensava em escrever esse texto sobre pirataria, fui arrebatado pela lembrança do título de uma música do mineiro Jonathan Tadeu, “Deus sempre mata os saudosistas primeiro”. Tenho refletido muito se não estou apenas ficando velho e preso a um passado recentemente morto ou se o mundo está, de fato, ficando chato para quem não tem muito dinheiro sobrando. Há anos tenho desenvolvido técnicas para burlar anúncios publicitários no YouTube, Spotify e afins, quando decidi ouvir a música do Jonathan para relembrar a letra eu cliquei na thumb do vídeo depois de pesquisar por ele já esperando o anúncio começar para fechar o vídeo logo em seguida, abrir de novo para ver se começava sem anúncio e, se não, repetir esse processo com o som desligado até o vídeo abrir sem nenhuma propaganda. Tenho atualmente feito um ritual de fechar ou pausar o vídeo no fim antes de começar outra propaganda também mas, ou por sorte ou pelo canal ter desabilitado os anúncios no vídeo, não fui abordado por nenhum anúncio.
Não precisar fazer esse ritual me fez ter um pouco de paz de espírito em não ser um saudosista parecido com o jornalista relatado na canção de Jonathan. Não tenho coragem de dizer que as coisas eram melhores antes, mas a diferença tem sido obscena. Nos últimos meses decidi desativar minha conta premium no Spotify por motivos de Brasil Bolso-Guedes Tá Osso™ e desde então não tive a paciência de sequer tentar ouvir álbuns no YouTube (o Spotify sequer permite a audição de álbuns com o modo aleatório desligado). Escutei o “Phodi$mo” de Vandal que, por algum motivo, também não tem – pelo menos não tinha – propagandas ativadas e o da Little Simz que tem propagandas ativadas mas é bom demais para não ser ouvido. Hoje ao tentar ouvir um álbum de Baden Powell tive a ingrata experiência de nas cinco primeiras músicas ser interrompido por propagandas da Kwai, Shopee, Tik Tok, Ifood e afins: encerra um samba só de violão, calmo, sem voz e começa logo em seguida um popzão ou um roquezão com volume três vezes mais alto do que o da masterização do álbum em questão, graves distorcidos, flashes, jovens, memes, Gil do Vigor, essas coisas. A experiência de apreciar uma obra como obra se torna inviável independente do quão paciente você é ou não.
Pirataria virou crime?
Essa crítica não é direcionada aos artistas e criadores de conteúdos que escolhem ter propagandas para ter renda com suas obras nessas plataformas. Algumas plataformas sequer dão a possibilidade do autor de escolher por ter ou não publicidades de outras marcas atreladas à sua arte, o YouTube também não permite escolher quais tipos de marcas podem ser anunciadas em vídeos de artistas e criadores de conteúdo. A organização da distribuição de conteúdos em nuvem tem tomado uma forma extremamente estranha e alguns intelectuais como o economista Yanis Varoufakis (ex-ministro da economia da Grécia) têm argumentado que essas empresas têm se estruturado e funcionado com formas cada vez mais parecidas com as do feudalismo. Gostaria de explicar isso, mas infelizmente ainda sou incapaz então dê seus pulos caso queira entender o que isso quer dizer lendo essa matéria aqui.
O que tem me incomodado nisso tudo é o sentimento profundo de que as coisas eram menos complicadas nesse sentido há pouquíssimo tempo atrás. Na entrevista ao podcast Lança a Braba, FBC comenta o fim dos aplicativos de música sem conexão com plataformas de streaming nos celulares. Recentemente passei por esse nervoso também, ganhei um celular novo e meu antigo tinha um aplicativo de fábrica feito para tocar música e organizá-las, como sempre foi possível até poucos anos atrás, com base em arquivos armazenados na memória do próprio celular. O celular novo, avançadíssimo, de uma empresa sul-coreana, tem uma aplicação muito bem escondida fornecida pelo próprio Google chamado “Files“, Arquivos, em português. Se não soubesse inglês eu teria que adivinhar. O aplicativo funciona mal ao ponto de quando troco de tela dele para outro app ou bloqueio a tela e depois abro ela novamente, ele interrompe a sequência do álbum em execução e volta para a primeira música selecionada no álbum em questão: parece que virou crime consumir pirataria.
Brincadeiras à parte no que diz respeito à pirataria (é brincadeira viu, PF?!), o tocador não permite que eu ouça gravações feitas por mim de forma organizada sem que eu tenha que aderir a um nível de caoticidade, se é que essa palavra existe, absurdo. O bendito celular novo veio com vários aplicativos já instalados, inclusive o YouTube Music e o Spotify. O Spotify permite que eu acesse as pastas de música de meu celular através dele (é a antepenúltima opção na guia “Configurar” do app, fica na frente só da opção relacionada a preferências de publicidades), mas não permite que eu as organize por álbuns. Percebe o quanto isso é curioso?
A visão distorcida da indústria
As pessoas têm sido induzidas a abandonar a pirataria e a pagar por conteúdo, o que a princípio é algo positivo para os artistas e positivo para os consumidores por toda conveniência atrelada a esses serviços. Mas, ao mesmo tempo, os artistas têm sofrido para conseguirem remunerações dignas pelas reproduções/plays de suas obras nessas plataformas e, também ao mesmo tempo, as empresas que fazem a distribuição dessas obras, músicas, repassam milhões ou bilhões de dólares em valor para seus acionistas. Tudo funciona bem enquanto se paga pelo serviço mas, hoje em dia, como a pirataria deixou de ser um problema, a estratégia dos serviços de streaming têm sido regidas muito mais pela ideia da coerção do que da conveniência. Ou você paga, ou você não tem condição de ouvir um álbum inteiro em sua versão original.
“Mas Peste, sempre foi assim! Sempre foi necessário pagar para ouvir música!”, sim e não, né?! Nada além de uma ameaça de processo na contracapa de alguns CDs e vinis impedia alguém de dar ou emprestar um álbum para outra pessoa nos idos tempos das mídias físicas. Existem opções de compra virtual de música como através do Bandcamp, mas é incrível como a plataforma é pouco utilizada no Brasil, o que pode ser justificado pelo pagamento obrigatório em dólar americano (que atualmente está na proporção de 1 dólar = 2 rins humano) e via cartão de crédito. A opção da compra de mídias digitais levantam questões problemáticas como o argumento feito pelo ator Bruce Willis sobre a posse de arquivos digitais e, ainda que as pessoas tenham a posse de seus arquivos digitais legalmente reconhecida, como isso pode ser resolvido caso essas empresas que fornecem esses serviços saírem de atividade? A questão da posse de mídias digitais é a reedição da questão apontada no início desse parágrafo, da ameaça de processo – que de fato na contracapa de alguns CDs e LPs físicos, existem avisos sobre a suposta ilegalidade de dar a mídia física para alguém. É evidente que isso tudo era ignorado no caso dos CDs e LPs, mas esse caso ajuda a ilustrar o quanto essa visão que a indústria da música tem quando se fala sobre distribuição e venda de música é mal pensada.
Sem respiro
Tem sido interessante notar os desdobramentos disso tudo na cultura geral dos nossos tempos. A expectativas eram carros voadores em 2020, mas o que estamos ganhando é uma compulsão intensa da indústria pela venda e publicidade. Essa semana eu estava assistindo Netflix e qual foi minha surpresa quando pausei o anime que estava assistindo e logo em seguida apareceram sobre a tela pausada uma sequência de indicações de outras séries e filmes para assistir. Semana passada eu tinha nenhuma tela e nenhuma conexão com internet, estava numa livraria imprimindo um arquivo na minha cidade enquanto tocava de fundo um Jazz bem genérico e me lembro de ter tido o reflexo mental, o pensamento, logo após a música ter acabado: “vai vir uma propaganda agora”. Não era um CD nem uma pasta no HD deles, da calçada eu ouvia Gil do Vigor dizendo “Cheeeega de lavar louçaaa!!!” numa propaganda da Ifood.
A questão por trás disso tudo vai, na minha visão, para além do pagar ou não pagar. Ela conversa com a impossibilidade de se ter algum tipo de reflexão sobre o que uma pessoa acabou de ouvir, é um problema também gerado pelos auto plays do Spotify, YouTube e até na Netflix que não dá a possibilidade desativar o auto play em séries, ainda que você tenha o serviço premium. Em serviços de streaming de música, ao terminar um álbum eles continuam tocando outras coisas parecidas, o que pode ser um tanto quanto inconveniente para quem prefere consumir, seja lá qual for o conteúdo, tendo alguma forma de respiro ou pausa entre uma audição e outra. Para a maioria do público, a ideia de desativar essas opções sequer é levada em conta e a navegação ou audição é tomada pelas vontades dos algoritmos de recomendação instantânea e não, eles não são configurados para se adaptar ao seu gosto, mas sim para recomendar coisas que essas empresas considerem, por qualquer motivo que seja, recomendáveis.
Com todo esse papo de pandemia, na minha cabeça é muito fácil imaginar o mundo acabando por causa de alguma propaganda em algum momento-chave atrapalhando o funcionamento ideal das coisas. É muito mais fácil para mim imaginar holocausto nuclear começando por causa de uma propaganda posicionada sobre o botão de “cancelar lançamento” do que um vírus sendo fabricado pela China, por exemplo, um verdadeiro Ad-pocalipse. Existe uma frase popularizada por Mark Fischer em seu livro “Realismo Capitalista” (que pode ser comprado com desconto na livraria ______ usando o cupom _______) que diz algo sobre ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. É uma frase potente por chamar atenção ao fato de que pouco a pouco os prazeres e alívios mais mundanos da vida têm sido sequestrados e inviabilizados para quem não tem a possibilidade de pagar o preço cheio dessas ditas experiências. Por essas e outras, enxergo uma das fronteiras da resistência dentro dos territórios virtuais na pirataria.